Três anúncios para o crime, de Martin McDonagh

Por Pedro Fernandes



Se há um mal que molesta o bem-estar de qualquer um este se chama incompetência. O que se chama de crise desde há muito e agora se tem como uma qualidade inextinguível é constituída em sua grande parte pela incapacidade de se resolver o que é necessário ser resolvido. Há pelo menos duas razões que contribuíram para que essa prima-irmã da corrupção ganhasse o status quo de sustentabilidade institucional que agora vigora no âmbito mais variado das democracias ocidentais: uma certa comodidade vendida pela possibilidade de se comprar a qualquer custo o conforto que sempre almejamos; e uma interpretação falaciosa, que é tão antiga quanto a ideia de crise, de que as coisas são porque são. Ela é herdeira do discurso que reiterada vezes foi justificado pelos poderes dominantes: quando a Igreja era o braço do estado – “é assim porque Deus quer”; quando o estado se consolida independente – “é assim desde que o mundo é mundo”. Some a essas duas uma terceira, a do exagerado culto do indivíduo – esta, sim, outra herança macabra do capital – de que só quando as coisas me atingem é que posso adquirir alguma motivação por resolvê-la, se não, por que se envolver.

Esse é o tom que sustenta a narrativa de Três anúncios para o crime. Inconformada pela indissolubilidade do macabro crime com a filha, Mildred Hayes paga a uma agência de publicidade para utilizar três outdoors há muito abandonados por integrarem um campo de visão onde pouca gente circula a fim de denunciar a madorra da polícia sobre o caso. A ideia é extremamente simples, mas de motivação tão ampla que nem parece estarmos diante um roteiro estadunidense, quase sempre fadado ao fracasso quando se aventura em fazer cinema como fazem os franceses. A atitude dessa mãe tomada pelo ódio dividirá as opiniões dos da pequena cidade de Ebbing e uma a uma as instituições são expostas como um mero aparelho burocrático que pouco ou nada fazem pela resolução dos problemas que inibem o bom funcionamento da sociedade. Notaremos que, até mesmo aquela separação sempre apresentada como o maior feito do estado democrático – entre política e religião – só se confirma na figuração. Isto é, os poderes ainda existem presos à condição única de manutenção de um status quo que muitas vezes não condiz com a tarefa de responder pelas inquietações e necessidades nem coletivas tampouco dos indivíduos que as sustém.

A principal das instituições que o filme de Martin McDonagh expõe suas fragilidades é a polícia, então, que se apresenta ineficiente, preguiçosa, acomodada, interessada nas querelas de pouca importância, e, por tudo isso, cúmplice com a própria criminalidade. Mas, se nesse espólio de denúncias ninguém escapa, até a igreja encontra-se                 deturpada de seus interesses fundadores; esta, tomada pelas dores do impacto dos tais anúncios à cúpula da polícia, intercede Hayes a manter o silenciamento sobre o caso e esperar que as coisas sigam o curso, por assim dizer, amigáveis, como quer a chamada ordem requerida do poder. Depois, aqueles tradicionais setores que em toda parte mantêm suas relações de proselitismo com o poder dominante. O propósito silenciamento das instituições políticas, que em ocasião nenhuma aparecem na história, reafirma de outra maneira o conluio assumido entre os poderes dominantes em nome de seus interesses particulares.

A incompetência não significa de um todo que a instituição opere totalmente de fachada. Três anúncios para o crime denuncia que os propósitos uma vez desvinculados do interesse pelo outro e pelo coletivo estão, muitas vezes, canalizados para outras frentes que flertam com um regularização daquelas sombras cujo interesse da instituição devia ser o de coibir. E aqui toca numa situação cara ao contexto estadunidense que é o ensaio de um novo levante contra as minorias, o que não é, todos sabemos, uma condição apenas dos Estados Unidos, mas um decréscimo dos valores e direitos do cidadão verificado ao redor do mundo. Notoriamente assistimos diariamente a diversidade de atitudes praticadas contra a dignidade humana, o que nos cobra a necessária vigilância que parece também nos faltar.

Mildred Hayes é esta personagem que não silencia ante a incompetência e trabalha em todas as frentes porque se cumpra seus direitos de cidadã. Isto é, sua figura não se apresenta apenas como um elemento de uma narrativa cujo propósito é denunciar as mazelas da instituição; ela nos cobra uma mudança de atitude frente ao nosso comodismo e aos universos de silenciamento que de todas as formas tentam nos impor. Motivada por um só desejo, que se esclareça o assassinato da filha e os responsáveis sejam punidos como manda a lei, os três anúncios de Hayes não são apenas para os policiais e as autoridades de Ebbing são para nós quando indiretamente nos convocam a responder o que temos feito para se esclarecer a situação na qual estamos metidos.

Nesse âmbito, é impossível não sublinhar o papel enviesado da mídia nessa sociedade onde as instituições respiram sob ajuda de aparelhos. Se noutra ocasião sua tarefa pode servir aos interesses coletivos, na conjuntura atual, de olhar apenas para si, sobretudo a imprensa se esforça para transformar o drama num escarcéu sensacionalista cujo propósito é o de jogar uns contra os outros e contribuir para que o foco principal da questão seja desviado para proposições que em nada ajudam na dissolução dos dilemas. Qualquer semelhança entre esse papel e o que se verifica no Brasil não é mera semelhança; somos o puro reflexo de um modelo falido e que ainda insistimos em adotá-lo como saída para os nossos problemas.

É possível que os favoráveis ao justiçamento encontrem no desfecho de Três anúncios para o crime, em que o ódio não se aplaca porque as respostas não chegam aos anseios de Hayes, a justificativa em nome da qual trabalham: quando o estado se omite de suas atribuições, resta-nos julgar por nossos próprios meios. E, não estarão de um todo errados na leitura. Mas, é preciso sublinhar que isto não se configura numa apologia à política do olho-por-olho-dente-por-dente. Esse desfecho culmina justamente com a denúncia de que a incompetência é fabuladora para os motivos dos elementos que ora se instalam e ganham atenção para o poder. A incompetência do Estado contribui para o esvaziamento político e este favorece à reaparição da tirania. E pensar que por aí se diz que esse modelo social que vimos palmilhando é, de longe, o melhor que já conseguimos fazer. Pura falácia!

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