O último suspiro, de Daniel Roby


Por Pedro Fernandes



Um leitor de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, não deixará de estabelecer, à primeira vista, uma relação entre esta obra e o filme de Daniel Roby. É que aqui, como no romance do escritor português, estamos diante uma modificação radical e casual do mundo qual o conhecemos pela instauração de uma situação-limite capaz de conduzir a humanidade a uma profunda revisão de seu estágio e de sua condição.

Num dia qualquer, um tremor de terra favorece o aparecimento – ao menos é este o diagnóstico primeiro apresentado pelas autoridades – de um pesado nevoeiro branco que cobre até certa altura quase toda Paris. A princípio os sobreviventes são aqueles que moram em lugares mais altos, os que conseguem se refugiar para o telhado ou pessoas como Sarah, a filha do casal Mathieu e Anna, quem, devido a uma rara doença precisa viver presa a uma câmara estéril. Com este grupo, Daniel Roby depositará o fio de esperança despontado no final da narrativa e abrirá a construção de um enigma representativo do principal tom de sua alegoria.

Podemos designar que O último suspiro constrói uma crítica à nova era de nossa civilização, definitivamente escrava do individualismo e do aparelho tecnológico. Este só aparentemente nos oferece uma sensação de perfeita estabilidade, quando sua verdadeira natureza (e também a nossa) é perecível e extremamente frágil. A primeira parte da narrativa sublinha o efeito crítico ao formalizar uma apresentação sobre o universo familiar de Mathieu e Anna. Eles, como Sarah, estão em suas próprias bolhas; separados, Mathieu vive num pequeno apartamento situado em frente a onde vivem Anna e a filha. A precisão dos encontros marcada pela determinação de um Smartphone ora capaz de manter os sozinhos entregues à sensação de união ora capaz de determinar o tempo de chegada em casa depois de uma viagem para fora do país, a mesma precisão favorecida pela câmara para o bem-estar de Sarah ou a sensação de aula induzida pela videoconferência entre a professora e o aluno são alguns dos elementos que tornam o tecnológico o elemento recorrente na trama fílmica e formam a atmosfera desse corriqueiro acentuado pelo individual.

Não tardará para a alteração profunda no estar das pessoas e das coisas. As condições instauradas depois do pequeno tremor de terra, sentido por Mathieu enquanto se deixa consumir pela sensação de estabilidade ou normalidade de tudo, obrigará a reinstauração da união do casal em nome de encontrar uma alternativa para continuar a manter a vida de Sarah, aparentemente a que primeiro sucumbiria a uma ordem em que o imperativo da tecnologia fosse suspenso por tempo indeterminado, suspensão como acontece. Os dois encontram refúgio no apartamento de um casal de idosos, onde passarão pela angústia da espera, pela reaprendizagem do convívio e pelos exercícios de criatividade capazes de oferecer a possibilidade vencer à condena a que todos estão submetidos e zelar pela vida de Sarah. Estes momentos constituem a segunda parte da narrativa.

Da instauração dos possíveis à corrida por realizar a única alternativa encontrada pelo que poderá ser um casal adâmico do novo mundo – plano que inclui sempre em primeiro lugar a salvação da filha – a narrativa escolhe não o desfecho simples capaz de encaminhar para um, entre-mortos-e-feridos-todos-que-lutaram-foram-felizes. Entre os possíveis, resulta uma compreensão sobre a fatalidade da existência, segundo a qual tudo que vive caminha para a morte, por mais que não aceitemos essa possibilidade. Isto é, o final de O último suspiro não recai na repetição comum das produções do gênero fabricadas por Hollywood – estas que se mostram continuamente mergulhadas na impossibilidade de construir costumeiramente uma história de fôlego e de profundidade, o que não é um caso recorrente no cinema francês. 

Isso se deve ainda porque o cineasta não está preocupado em repetir também alguns dos modelos estabelecidos na ficção científica; escolhe a força da reflexão como substrato à narrativa e não os meros jogos de ação-reação capazes de reduzir personagens humanas em projeções robóticas de heróis míticos. Não que deixe de lado o tônus da ação, mas consegue conjugar de maneira interessante, esta aos tons do suspense, da catástrofe e da intimidade, para repetir o que disse, não exatamente nesta ordem, Jacky Bornet numa das primeiras leituras sobre o filme.

De alguma maneira, a última parte da narrativa serve de eco para a escolha da tradução brasileira ao título original – Dans la brume [algo como Na névoa, se fôssemos considerar uma versão ao pé da letra]. Aliás, a escolha dos tradutores é uma excelente sacada, quando lembramos que a vida de toda Paris se encontra sufocada pela impossibilidade de respirar e que toda a dedicação de Mathieu e Anna são últimos suspiros por uma vida em comum. Ou seja, mais que mitificar, Roby quer provocar à humanização, como se disséssemos o quanto estamos, sobretudo pelas novas responsabilidades impostas às novas maneiras de ser (que incluem o estar além o mundo empírico), de alguma maneira sufocados e, logo, para realinhavar de alguma maneira o ponto entre o filme o a alegoria saramaguiana, cegos, impossibilitados mesmo de reconhecer que somos nós, os que se dizem normais (e não os tomados por alguma limitação), que estão presos, limitados no mundo.

A profundidade dos diálogos – sobretudo no encontro entre a tradição e a modernidade, se repararmos dessa maneira a vivência de Mathieu e Anna no apartamento do casal de idosos – e a luta pela sobrevivência deles em torno de Sarah servem de bases a tornar o mundo pós-nevoeiro numa projeção utópica e paradisíaca, como insinua o jogo de imagens que vez ou outra corta o ritmo ora ofegante, ora em suspense da narrativa e cujo sentido só será percebido em sua inteireza no desfecho da narrativa.

Tornar a narrativa em crítica e revisão do seu tempo – mais tudo o que aqui se disse sobre o filme – são pontos positivos para O último suspiro. Resta-nos, motivados pela sua riqueza, algumas provocações: até que ponto a humanidade contemporânea estará na perfeita segurança prometida pelos novos profetas desta era? Ou: será que, pelo que podemos comprar, estamos mesmo livres enquanto lutamos pela liberdade dos que acreditamos presos?

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