Como era ser Franz Kafka

Por Darío Villanueva
 


Embora no prólogo e o primeiro capítulo desta biografia se refiram a anos de 1910 e 1911 como os “anos decisivos” aqui referidos em detalhe são os quatro seguintes, até 1915. Durante este interregno, Franz Kafka manteve uma febril atividade literária, de criação e busca de um lugar e um nome na literatura alemã, graças sobretudo à ajuda de Max Brod e à atenção que lhe foi dada por Kurt Wolf, um editor de Leipzig.
 
Com ele publicou seu primeiro livro, Contemplação, ao mesmo tempo em que escrevia versões sucessivas de O desaparecido ou Amerika e de O processo, e enviava para impressão O foguista e, já em plena guerra mundial, A metamorfose. Mas no âmbito pessoal, o escritor mal concilia seu emprego de meio expediente no Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho do Reino da Boêmia, em Praga, com a gestão de uma fábrica familiar de amianto, e inicia seu caso amoroso, principalmente epistolar, com uma menina judia residente em Berlim, Felice Bauer, com quem, em 1914, selou, e depois rompeu, um compromisso de casamento.
 
Coisas demais para um jovem hiperestésico, vegetariano e naturista que, em virtude da “autossabotagem” que Reiner Stach lhe atribui, pede desculpas ao chefe de seu escritório por faltar ao trabalho, alegando que a culpa é somente dele, por sua “terrível vida dupla, da qual provavelmente não haverá escapatória a não ser a loucura”. Vida dupla em que tudo — família, profissão, saúde, amor, amizade, fidelidade à sua linhagem, política, lazer — formam uma enorme soma sempre relegada a uma só coisa, a literatura, para a qual Kafka, em carta a Felice Bauer de 14 agosto de 1913, confessa que não ter interesse, porque “sou feito de Literatura, não sou outra coisa e não posso ser outra coisa”.
 
Reiner Stach reconhece a contribuição de Klaus Wagenbach em sua biografia do jovem Kafka que vai até 1912, e dedica setecentas páginas para avançar mais três anos na vida do escritor de Praga. Para além do tour de force que esta equação entre texto e tempo representa, a obra de Stach é fascinante e polêmica pelos postulados metodológicos de que parte, explícitos numa introdução que não se perde, e depois se reitera em vários capítulos da própria biografia, que nesse sentido adquire o viés de uma verdadeira metabiografia.
 
Stach é um biógrafo bem coberto por múltiplos saberes. Sua obra revela um bom conhecimento da Literaturwissenschaft, sobretudo em sua dimensão empírica amplamente cultivada nas últimas décadas precisamente na Alemanha, com atenção aos processos de criação, mediação, recepção e recriação ou pós-processamento de textos literários, mas tampouco lhe são estrangeiros os referenciais teóricos da psicanálise e do marxismo, que ele aplica com bom senso ao caso de Kafka. Mas é notável, sobretudo, sua preocupação estético-filosófica, o “ponto de vista hermenêutico” a que alude e, sobretudo, a que recorre na referida introdução.
 
Com certo gesto arrogante, Stach questiona a metodologia de seus colegas em uso, e é enfático ao afirmar que “o biógrafo de um filósofo deve saber pensar, e o de um escritor, saber escrever”. Disso decorrem duas consequências plenamente cumpridas em Kafka. Os anos decisivos: a reivindicação para a biografia de um título nobiliárquico, o de um gênero literário autônomo, e a afirmação flagrante de que a empatia é a “palavra mágica do biógrafo”.
 
Nos termos de Hans Georg Gadamer, essa atitude em relação à dos biógrafos positivistas equivale ao contraste feito em Verdade e método entre uma “hermenêutica de reconstrução”, na linha de Schleiermacher, e outra “de integração”, como a preconizada por Hegel. Isso não quer dizer que Stach opta abertamente pela invenção em vez da documentação. Ele conhece e administra essa veia quase inesgotável representada pelos diários de Kafka, seus manuscritos, suas cartas e as que Felice Bauer lhe escreveu, os textos de Brod e outros diversos documentos, tanto literários quanto fotográficos.
 
Como o próprio Stach reconhece, há dias na vida de Kafka naqueles anos em que podemos reconstruir o que ele fez hora a hora, mas mesmo quando esse é o caso, resta uma margem de compreensão simpática que o biógrafo deve buscar para chegar a uma quimera: o conhecimento de como era ser Franz Kafka. 


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Kafka. Os anos decisivos, Reiner Stach
Sofia Mariutti (Trad.)
Todavia, 2022
652 p.


* Este texto é a tradução livre para “Cómo era ser Franz Kafka”, publicado aqui, em El Cultural.
 

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