Breve (e solto) devaneio sobre "Outono azul a sul", de Calí Boreaz


Por Pedro Belo Clara



Prepare-se o leitor para escutar, na desfolha de cada poema, o ritmado pulsar dum coração de dupla raiz. Será, como a autora afirma, prova do seu firmado atlanticismo, que quando posto em conversa se assume numa atlanticofonia redonda, assim inteira e sem asperezas. Nesse eco quase em surdina reverberando pelos versos que se vão sucedendo, oferecem-se as linhas daqueles vastos horizontes onde um olhar de poeta de bom grado morre num sorriso de flores. (E também o dum bom leitor, acrescente-se.)

Dir-se-á que em contemplações se plantou este livro de clandestinidades, de exílios e de amor ausente – ambos perfumados pela mais inebriante maresia, dando ênfase ora à vida que esbraceja ora à melancolia que lentamente se insinua. Mas o poema entre dá aos mais incautos um justo aviso:

entre observar o mundo e viver no mundo
há um frágil quase etéreo espaço

De nada serve a testemunha passiva. Como conhecer o sabor vivo da amora sem ferir a mão nos espinhos que a guardam? Ou talvez seja melhor deste modo, dada a inclinação marítima da obra: de que vale o estudo profundo das artes de largar âncora se a embarcação não abandona o cais?

Dê-se um mar para a afoita projecção de toda a varanda que se quer navio, firme na sua anunciação ("numa distração do silêncio / na varanda desarvorada / enfim feita navio» in toda a varanda quer ser um navio"). Nos caminhos que se contam, também uma busca se observa no dobrar de cada poema feito vela na soltura do vento mais propício.

É um acorde vivo da música do mundo que daqui se extrai, daí que a poetisa também se diga "de lugar nenhum" ("o violão intocado"). O particular é universal o coração que vibra é o de todos:

não aterrisso em brasileiro, não aterro em português. vou-voo
nos pólens da língua-poesia
("aniversário")

Na sua expressão, já assim se revela, sobressai a habilidade no trato da linguagem – essa tantas vezes instável forma de vida aqui feita coisa palpável na alegria duma sempre sadia subjectividade –, dando desse modo forma a uma manifestação poética de extrema originalidade.

Aflora cada poema dum traço errante, um traço vivente de viajante, de nómada secreto – o sentido das aves migrantes. Pelas margens dum rumo mais de improviso que de razão, (ou de razões que se ocultam ao julgamento da própria razão), miríades de aromas e cores adornam impecavelmente cada curva, cada passo, cada sorvo de ar ou paisagem implorando degustação.

Tudo se compõe, portanto, na certeza duma incerteza maior. Assim convém por motivos que escapam ao mistério da criação; somente se entende como válida a via pela qual, no término da viagem (ou melhor: navegação), floresce a dádiva final, a eterna recompensa – cintilando como puras cintilam as silentes coisas na solidão imensa das grandes estradas vazias.

Mas como acontece nas grandes histórias, aquelas que realmente marcam quem se atreve a deixar o cais da sua comodidade, tamanha conquista só ao mais afoito leitor pertencerá.

meu Rio de Novembro,
novembro, novembro… me lembro… te lembro…
azul… a sul de mim, meu norte…
minha rosa, dos ventos de rajada forte…
todos os meus átomos em queda livre… num olhar…
ventos… que nos voaram… nublada dor…
lembrar é reviver, mas em tom menor
("dor maior")

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