Itinerários da poesia de Zila Mamede

Zila e eu*


Por Manoel Onofre Jr. 




Já conhecia Zila Mamede de nome quando tive com ela o primeiro contacto pessoal. Foi por volta de 1960. Trabalhava eu na Biblioteca da Faculdade de Direito de Natal, como auxiliar de bibliotecário, e Zila, já então diplomada em Biblioteconomia, aparecia por lá, vez ou outra, para orientar a diretora da biblioteca, D. Dudésia, uma senhora corpulenta, de voz e gestos dramáticos, rádio-atriz nas horas vagas.

Eu guardava na gaveta um poema (?), o primeiro até então, único que cometera.

Certo dia, criei coragem e mostrei-o a Zila. Precisava do aval da poeta, a festejada autora de “Rosa de Pedra” e “Salinas”. Ela ia passando, apressada, diante do meu birô, e mal se deteve para receber o “poema”; leu-o, rapidamente, e entregou-me de volta, com um reparo quanto à utilização da palavra “embalsamado”. Nada mais me disse, nem lhe foi perguntado.

Minhas veleidades de poeta morreram naquele instante. Algumas décadas depois, eu voltaria a reincidir no delito de lesa-poesia, ao perpetrar outro poema, que veio a ser publicado em jornal. Mas, fiquei somente neste, graças a Deus, ou melhor, graças a Zila Mamede.

Tive outro encontro com a poeta, quando participei, juntamente com ela e Myriam Coeli, da comissão julgadora do Prêmio Othoniel Meneses, de poesia, não me lembro em que ano.

Reunimo-nos, para o julgamento, numa sala do Departamento de Cultura do Município, na Rua Mossoró. Elas me pareceram extremamente criteriosas e, até mesmo, severas. Eu achava que Luiz Rabelo merecia o prêmio, mas fui voto vencido. E o prêmio não foi concedido.

Já então admirava muito as duas. Zila, porém, tocava-me mais a fundo, com a sua poesia de forte apelo telúrico. A leitura de “O Arado” fez com que eu me tornasse seu fã. Empolgava-me o cheiro de terra molhada que me parecia desprender-se daquele livro.

Zila morreu, tragicamente, numa sexta-feira, 13. Era o dia 13 de dezembro de 1985. O mar da Praia do Forte, onde costumava nadar, levou-a para o outro lado. Seu corpo foi encontrado na Praia da Redinha. Para algumas pessoas teria sido suicídio. Um estranho ato poético de comunhão com o mar. Vale dizer que o mar e a morte estão presentes, de modo premonitório, em algumas poesias de Zila.

Eu me inclino a aceitar a versão de acidente, dadas as circunstâncias em que se verificou o fato, já do conhecimento de todos.

***

Tinha grande admiração não só pela poeta, mas também pela figura humana. a princípio achava-a antipática. Depois, fui vendo que, por detrás daquele seu jeito áspero, escondia-se uma pessoa doce, de bom caráter.

Zila gostava de prestigiar os lançamentos dos autores da terra. Era solidária. Certa vez, procurada pela Associação de Guias de Turismo de Natal, para fazer palestra sobre Literatura Potiguar, escusou-se, mas indicou o meu nome. Fiquei lisonjeado.

Meu último encontro com ela deu-se no seu apartamento do Edifício “Caminho do Mar”, aonde fui pedir-lhe autorização para transcrever dois poemas seus –“Rua (Trairi)” e “O Galo (do Convento Santo Antônio)” – no meu “Guia Poético da Cidade do Natal”. Mostrei-lhe os originais do livro, e ela escreveu de próprio punho breve mensagem em cada um dos poemas.

Sobre “Rua (Trairi)”:
“Manoel Onofre; morei 24 anos na rua Trairi – de 1947 a 1971. Morei 9 anos em Lagoa Nova e no dia 24 de maio de 1980 voltei a morar no bairro Petrópolis, mas desta vez aqui na rua Seridó, onde você veio esta noite.
Com melhor êxito pra este livro
Zila
20/06/83”
Perguntei-lhe qual “o amigo morto” a quem está dedicado o poema “O Galo (do Convento de Santo Antônio)”. Em resposta escreveu:

“Manoel Onofre: este poema é dedicado a Djalma Maranhão; mas quando foi publicado pela primeira vez, no jornal, tiraram o nome de Djalma. Não deixei que publicassem. Pelo menos fica isso aqui registrado para a história. E nos livros não incluí mais o nome dele, para não ser retirado novamente. Esta história é meio trágica, não? Assim, você fica sabendo. Não é possível que na próxima edição o nome Djalma não apareça.
Natal, 20 de junho de 1983
Zila Mamede”

Era a censura, nos execráveis “anos de chumbo”.

Guardo, cuidadosamente, esses documentos, que julgo de importância para a biografia dessa que é por muitos considerada a mais alta expressão da Poesia do Rio Grande do Norte.


ANEXOS

Rua (Trairi)

Nos cubos desse sal que encarcera
(pedra, silêncios, picaretas, luas,
anoitecidos braços na paisagem)
a duna antiga faz-se pavimento.

Meu chão se muda em novos alicerces,
sob as pedreiras rasgam-se meus passos;
e a velha grama (pasto de lirismos)
afoga-se nos sulcos das enxadas,

nas ânsias do caminho vertical.
Ao sono das areias abandonaram-
se nesta rua vívidos fantasmas

de seus rios-meninos que descalços
apascentavam lamas e enxurradas.
Meu chão de agora: a rua está calçada.


O galo (do Convento de Santo Antônio)

No pouso
assento
ave altiplana
o galo
atento
firme espacial.

Fundido de ferro
(galo ferreiro)
sem pluma e
canto-voz-matinal.

De ser vigia
vive a ave-seta
secularmente
galo em seu posto
ave anuncia
Natal Cidade:
não Natal-dia.


* Texto extraído da Revista Preá. Natal, RN – n. 17, março/abril, 2006, p. 56-57. Os poemas são dos livros O Arado e Exercício da palavra, respectivamente.


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