Miacontear - Enterro televisivo

Por Pedro Fernandes


Oh! Cride, fala prá mãe, que tudo que a antena captar, meu coração captura
Titãs

O tom dessa narrativa retoma àquelas histórias inusitadas que se passam muitas delas com algum vizinho de nossa rua. Aliás, a grande maioria dos contos desse O fio das missangas, apesar de serem histórias cujo cenário é Moçambique, os dramas incorporados pelas personagens de tais histórias são muito próximos dos dramas vividos em qualquer outro lugar mundo. Em Enterro televisivo estamos no sepultamento do marido de Estrelua, que do nada grita pedindo um televisor. O que tinha em casa havia combinado com o coveiro e posto junto com o defunto no caixão. "Era um requisito de quem ficava, selando a vontade de quem estava indo." Depois de o padre sossegar o alvoroço que se forma por causa desse pedido da velha novamente ela se "espreita" e começar a perguntar pela presença de desconhecidos - Bibito, Carmenzita - todos personagens de novelas. "Esses que os demais teimavam em chamar de personagens, eram esses que adormeciam o casal de velhotes, noite após noite."

O que esse conto de Mia Couto toma como tema são as vértebras do individualismo e da solidão na terceira idade. Pela atual conjuntura social é corriqueiro, quando chegam certa idade e os filhos todos estão criados, cada qual com seus empregos, vida própria e um mundo de afazeres, que eles se sintam abandonados por não receberem dos filhos a mesma atenção de quando eram seus dependentes. Quando não são abandonados. Sabemos que o atual modelo de sociedade não preza o velho e o trata como refugo, lixo humano. Os filhos em Enterro televisivo são ausentes. E isso vem expresso não apenas pela relação que Estrelua desenvolve com o aparelho de TV, mas pelo próprio nome da personagem que está sendo sepultada - Sicrano - substantivo que traduz uma indeterminação pessoal e ainda na sua segunda categoria (cf. o Aurélio), tomando que a primeira é fulano e a terceira é beltrano.

Na companhia de Estrelua e de seu velhote apenas as sombras da TV com seus personagens de ficção mais reais do que seus próprios filhos. E não é a toa quando ela se põe a chamá-los, como também não é a toa a ideia que está mais para necessidade de levar o televisor juntamente ao defunto e ainda de fixar a antena da TV na lápide. A ligação metafórica dos fios ao morto e a transmissão do sinal reitera uma necessidade de escamotear a solidão extrema.

O televisor é o elo que reiventa as relações humanas. Se para muitos ele é apenas um aparelho inerte para o qual as pessoas olham, para outros ele se configura como o aparelho pelo qual elas olham - reiterando a epígrafe do conto: "Uns olham para a televisão. Outros olham pela televisão." A posição do olhar ocupada nas duas sentenças é totalmente oposta: numa, o televisor é mero aparelho, objeto; noutra, ele ocupa uma personificação que o leva a integrar-se como membro na relação sujeito-objeto.


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