Anna Kariênina, de Joe Wright

Por Pedro Fernandes



Não é a primeira vez que o cinema se beneficia do teatro como espaço para realização da narrativa; e a apropriação mais significativa das produções contemporâneas terá sido aquelas da trilogia montada por Lars Von Trier, principiada por Dogville e seguida de Manderlay e – ainda à espera desde há muitos anos, diga-se – de Washington. Mas, diferentemente do brilho e do impacto que causam os dois filmes de Trier, Anna Kariênina, de Joe Wright, que se utiliza da mesma cena teatral, fica apenas com a primeira característica, que a segunda finda apenas no romance de Tolstói.

Esta também não é a única adaptação da obra para o cinema, mas a quarta: a primeira foi feita ainda em 1935 por Clarence Brown e com a belíssima Greta Garbo no papel principal, papel, aliás, que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza daquele ano; depois, em 1948, uma produção britânica, sob a batuta de Julien Duvivier, um dos cineastas franceses mais importantes do cinema depois de Jean Renoir e Ingmar Bergman, e com dois grandes atores, Vivien Leigh, a musa de E o vento levou e Ralph Richardson no papel de Alexei Karenin e consagrado por filmes como Doutor Jivago e Spartacus. Em 1967, Aleksandr Zarkhi, que mais tarde dirigiu o respeitado Vinte e seis dias com Dostoiévski foi à trama do romance de Tolstói e compôs uma versão russa. O filme chegou a ser indicado para o Festival de Cannes do ano seguinte, mas o evento não chegou a concorrer uma vez que o festival não ocorreu devido às manifestações de Maio de 68 na França. E, por fim, em 1997, Bernard Rose, compôs sua versão com a atriz francesa Sophie Marceau no papel de Anna.

Mesmo com todas as críticas negativas apresentadas para a produção de 2012, nenhuma terá apontado, ao certo, qual a melhor das quatro leituras. Adianto que também não farei isso. Estou restrito a comentar sobre a teatralização cinematográfica de Wright. Este Anna Kariênina está, no meu olhar, muito distante do rebaixamento costurado por grande parte que estive lendo. Primeiro é de chamar atenção a atuação de Keira Knightley está muito bem acertada e Jude Law também incorpora bem os traços de Karenin. De modo que se fôssemos poupar o filme das críticas negativas, o trabalho dos dois atores seria suficiente.


Ao adotar o teatro como um espaço metafórico para a Rússia de Tolstói, espera-se que os atores assumam uma postura equilibrada desde o movimento em cena a representação do texto. Estando diante da câmera isso não pode deixar transparecer um artificialismo. E nesses dois quesitos não só os autores principais, mas todos, inclusive a direção, parecem ter trabalhado fortemente para permitir fugir da massada generalizada que poderia derrubar de vez as bases da grande arena montada. Não quer dizer que esta arena seja constantemente solapada, principalmente quando ficamos diante de uma trilha sonora que, sim, estabelece instantes de monotonia à narrativa. Entretanto, a estrutura equilibra-se.

Mas não ficará apenas nisso as observações positivas sobre o filme nem apenas nisso as observações negativas. Do primeiro lado, vale destacar o figurino, muito bem desenhado e fiel aos limites históricos a que se refere o romance. Nada de exageros; mas também nada de sobriedade. Prevalece o clássico, aquilo que deve servir de base para a elaboração imagética do contexto representado. Não será à toa, portanto, o gesto de ter ganhado o Oscar por essa categoria. Peca, talvez, pelo excesso de roupa para a personagem principal, que parece estar mesmo num desfile, como uma interessada em dar contas de uma série de modelos de determinada estação.


Adiante, parece ser um grande feito o da direção o de fazer com que não se perca o essencial do romance do Tolstói; está lá a crítica bem desenhada pelo romancista à sociedade russa do século XIX e a ideia de fazer desse espaço um teatro parece ainda mais adequada a essa proposta tolstoiana. No teatro, por mais realista que seja a apresentação, há sempre um limite muito claro entre o que apresentado e a realidade externa, permitindo sempre o espectador está simultaneamente imerso nas duas condições; e a quebra desse limite entre representação e representado tem sido uma das buscas maiores do cinema. No caso de Anna Kariênina fica evidentemente não só mostrar a sociedade russa como uma grande representação como dizer o que se esconde por baixo dela. Agora, a razão para conseguir essa maestria da coesão entre filme e romance talvez possa ser justificada pelo próprio currículo de Wright, alimentado grandes como produções do tipo como Desejo e reparação, adaptação do romance Reparação, de Ian McEwan e Orgulho e preconceito, versão do romance de Jane Austen e curiosamente, duas adaptações em que é possível ficar diante da atuação de Keira Knightley.  

Não perder a substancia de um romance de mais de novecentas páginas e conseguir dar-lhe uma forma moderna, talvez tenha sido isso o que de fato motivou a escolha do diretor pelo teatro e pela montagem da troca de cenários e de figurinos à frente das câmeras, como se quisesse provocar o telespectador à imaginação em torno dos acontecimentos, tal como se estivesse à frente do romance. Sendo assim, o teatro acaba constituindo-se também personagem do filme, não apenas pelas pegadas deixadas a todo instante da trama, mas por traduzir sentimentos, estados de espírito, situações das personagens. Isto é, traz à cena não apenas a atmosfera a que se refere o romance, mas a própria vivência interna dos sujeitos. E não é este o grande trunfo do romance do escritor russo?

Os que terão se cansado com isso, devem ser porque estão tão mal acostumados com a possibilidade de não pensar despertada pelos efeitos do cinema corriqueiro que visa mais o lúdico sem conteúdo que qualquer movimento por fomentar a imaginação. Isto é, entre a negatividade desenhada por uns e a crítica cautelosa ensaiada por outros, é preferível ficar um nível acima desse segundo grupo. E por uma razão somente: esta, de nos despertar para o papel de sujeitos ativos perante a obra de arte.

Ligações a este post:
No Tumblr do Letras disponibilizamos uma série de fotografias das atrizes que já viveram Anna Kariênina no cinema. Visite-nos!

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #613

Boletim Letras 360º #612

Boletim Letras 360º #602

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

O centauro no jardim, de Moacyr Scliar