Pequenas rotinas, grandes mentes (Parte 2)

Esta pose noir de galã é só pose. Hemingway tinha preferência por escrever em pé. Facilitava a circulação de ideias.

Há aproximadamente um mês publicamos uma matéria aqui acerca da rotina (algumas delas nada convencionais) de algumas mentes brilhantes – em parte, de nomes da Literatura – no trato com a produção escrita. O tema foi motivo para um trabalho extenso de catalogação feito pelo jornalista Mason Currey; daí, pela quantidade de situações apresentadas, ficou acordado que voltaríamos ao assunto para adiantarmos (ou melhor, bisbilhotarmos) um tanto mais sobre a vida íntima de alguns nomes importantes. Adiantamos que isso não tem nenhum efeito literário se não o da curiosidade. Mas, juramos, não tornaremos este espaço numa Ti-ti-ti. Já findamos por aqui esse catatau de situações íntimas. Quem quiser mais que corra à procura noutros espaços.

1. O primeiro da lista é Ray Bradbury, o autor de As crônicas marcianas e A cidade inteira dorme também escreveu até uma obra em que associa os ensinamentos do Zen com o trabalho com a palavra. Escritor compulsivo, Bradbury não terá passado um dia sequer, desde os 12 anos, sem escrever. Diferentemente de outros escritores que sempre tiveram a necessidade de seus rituais próprios para tanto, ele disse certa vez a The Paris Review que nunca necessitou mais que uma caneta ou máquina de escrever e papel, bem, ao menos até a escrita de seu texto mais conhecido, Fahrenheit 451.

“Eu consigo trabalhar em qualquer lugar. Escrevi em quartos e salas de estar na adolescência com meus pais e meu irmão em uma pequena casa em Los Angeles. Eu trabalhava em minha máquina de escrever na sala, com o rádio, meu pai, minha mãe e meu irmão, todos falando ao mesmo tempo. Mais tarde, quando queria escrever Fahrenheit 451, eu encontrei na UCLA uma espécie de sala de escrever, em um porão, onde você colocava uma moeda de 10 centavos na máquina e comprava 30 minutos de tempo de escrita.”

2. Susan Sontag demonstra ser totalmente contrária ao modo debochado de trabalho de Ray Bradbury; em 1977, escreveu em seu diário “Eu vou acordar toda manhã no mais tardar oito horas. (Posso quebrar essa regra uma vez por semana); vou almoçar somente com Roger [Straus]. (Não, eu não vou almoçar fora. Posso quebrar essa regra uma vez a cada duas semanas); vou escrever no caderno de anotações todos os dias. (Modelo: Lichtenberg’s Waste Books); vou falar para as pessoas não ligarem pela manhã, ou não atenderei ao telefone [se ligarem]; vou tentar restringir minhas leituras para as noites. (Eu leio muito – como uma fuga para não escrever); vou responder cartas uma vez por semana. (Sexta? – Tenho que ir ao hospital, de qualquer forma.)”

Noutra ocasião, também à The Paris Review Susan confessa ter o fetiche de escrever com caneta hidrográfica e às vezes com lápis em blocos de anotações amarelos ou brancos, “aquele fetiche de escritores americanos. Eu gosto da lentidão da escrita à mão. Então eu digito isso e depois rabisco tudo. E continuo redigitando, sempre fazendo correções, tanto à mão quanto diretamente na máquina de escrever, até que não veja mais como tornar aquilo melhor. Até cinco anos atrás, era assim”.

É quando lhe chega o computador e a escritora logo o incorpora como ferramenta de trabalho. “Depois do segundo ou terceiro rascunho isto vai para o computador, então eu não redigito todo o manuscrito mais, mas continuo revisando à mão numa sucessão de rascunhos e cópias para o computador”.

“Eu escrevo em jorros. Escrevo quando tenho que escrever, quando a pressão aumenta e sinto confiança suficiente que algo amadureceu em minha cabeça e eu tenho que escrever isto. Quando algo está realmente a caminho, eu não quero fazer mais nada. Eu não saio de casa, na maioria das vezes me esqueço de comer, eu durmo muito pouco. É uma forma de trabalho bem indisciplinada e não me faz muito prolífica”.

Simone de Beauvoir: dificuldades para começar, o dia só pelas 10h, o texto só no início da tarde.

3. Se seguiu ou não, Henry Miller escreveu, em 1932,  seus “11 mandamentos da escrita” ou que chamou de sua rotina diária. Pela manhã, “se estiver inseguro, digitar notas e guardar, como estímulo; se estiver bem, escreva”, abria assim o texto. À tarde prefere trabalhar seguindo “sem intromissões, sem diversão”, “escrever para terminar uma sessão por vez, em definitivo”. Já pela noite, escrita só se estiver no clima, mas sempre em menor volume que o ideal é “ver amigos, ler em cafés, explorar lugares desconhecidos, à pé” e planos, muitos planos, notas, gráficos e planos. Ah, e durante a escrita, nada de filmes! Bibliotecas, sim, uma vez por semana.

4. Já Simone de Beauvoir relata a escrita como algo que lhe vem com certa pressa, embora nunca tenha tido gosto pelo começo do dia. “Primeiro eu tomo chá e, então, por volta das dez da manhã, começo e trabalho até à uma da tarde. Então eu vou ver meus amigos e após isso, às cinco da tarde, volto ao trabalho e sigo até às nove. Eu não tenho dificuldades em recuperar o fio da meada à tarde”. Não tem apreço pelo mimetismo das revisões, embora, “se o trabalho está indo bem, eu passo de quinze a trinta minutos lendo o que eu escrevi no dia anterior, e faço algumas correções. Então eu continuo daí”.  

5. Seguindo o roteiro de outros escritores, Ernest Hemingway, tem preferência pelas primeiras horas da manhã. “Não há ninguém para te perturbar e é fresco ou frio e você vai para seu trabalho e se aquece ao escrever”. Tem predileção por reler aquilo que escreveu; é o que lhe dá fôlego para seguir o texto. E escreve até quando aquilo que escreve ainda lhe tem algum sentido ou senso de continuidade. Prefere as seis da manhã até o meio-dia; depois, retoma e gosta de só colocar um fim quando  está esgotado e ao mesmo tempo tão carregado.

O autor de O velho e o mar teve suas manias: a primeira, como Fernando Pessoa, escrever em pé, outra, terminar o dia junto com o texto sempre no meio de uma ação. Haverá a tentação de continuar escrevendo, é verdade, mas, só assim, a retomada no dia seguinte se torna mais fácil. Isso porque o começar sempre lhe foi a parte mais difícil.

Don DeLillo e sua fiel companheira: a máquina de escrever manual.

6. Don DeLillo só tem apreço pela máquina de escrever manual e prefere a manhã. Quatro horas de trabalho pela manhã. Depois, ao modo de Murakami, correr. “Isso ajuda a me livrar de um mundo e entrar em outro. Árvores, pássaros, garoa – é um bom tipo de interlúdio”. Depois disso, voltava ao trabalho no final da arte, por duas ou três horas. A corrida, diz, é uma “forma de clarear as ideias, aquela distância que se faz necessária às vezes, para que possamos enxergar as coisas melhor”. Seu grande defeito, “as divagações enquanto escrevo”. “Muitas vezes me pego olhando pela janela, longe do assunto que estou escrevendo. E nem sempre posso colocar a culpa na TV ou no barulho ao meu redor”.

7. Anaïs Nin também privilegiava a manhã como momento ideal para escrita. E fazia isso diariamente; já os diários, preferia a noite. O que tinha certo sentido se pensarmos que a forma textual do diário incute certa intimidade e esta está associada ao fechamento ou negro noturno.

A lista dessas manias ou desses contatos com a escrita bem que poderia ser feita com nomes brasileiros; sim, os nossos também têm suas manias. Desde o gosto de Clarice Lispector em preferir a noite (olha aí novamente o fechamento/o intimista), ao total isolamento do qual necessitava João Cabral de Melo Neto e a persistência de Ariano Suassuna em escrever e reescrever excessivamente tal qual Graciliano Ramos que chegou a deitar fora metades e metades de textos. Bom, quem sabe não descumprimos nossa promessa no início do texto e voltamos a este assunto de forma abrasileirada...

* Este texto é uma versão livre para um conjunto de notas editadas por Popova em Brain Pickings.

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