Carol, de Todd Haynes

Por Pedro Fernandes



Romper a estereotipia. Primeiro da visão rasa alimentada pela crítica repetitiva de que Patricia Highsmith só escreveu suspense e romances com certa inclinação para o policialesco. Segundo da visão sobre a sexualidade; esta nascida não pelo filme de Todd Haynes, que achou de adaptar o título da escritora estadunidense para o cinema, mas pelo papel desempenhado pela obra quando da sua publicação nos anos 1950; o romance foi o segundo da escritora e sofreu retaliação por parte da editora que primeiro publicou sua obra por se desviar do gênero com o qual estreou e, claro, pelo conteúdo. 

No livro, Therese Belivet, num dia de movimentada clientela na loja de brinquedos onde trabalha, se vê hipnotizada pela “alta e clara, com um longo corpo elegante dentro do casaco de pele folgado”* que lhe aborda, depois de perceber certo interesse no olhar da vendedora em saber de um presente para a filha (essa cena é reproduzida pela narrativa cinematográfica); mas Carol, é este o nome da mulher de olhos cinzentos, “claros e, no entanto, dominadores, como luz ou fogo”, no livro, está separada e inicia um relacionamento amoroso com a vendedora. Haynes terá preferido incrementar o drama com a ideia de que Carol está em processo de separação.

Se o filme agora apresentado não casou a celeuma vivida pela romancista quando da publicação de Carol, sobretudo no seu país de origem, a própria Patricia Highsmith tem sua parcela de contribuição na formação dessa nova mentalidade sobre a diversidade do amor. É ela quem conta sobre a extensa quantidade de cartas que Claire Morgan (o pseudônimo assumido na publicação do livro) recebeu de gays que se viram representados da maneira mais autêntica possível no romance: “Antes deste livro, os homossexuais, masculinos e femininos, nos romances americanos, eram obrigados a pagar pelo seu desvio cortando os pulsos, se afogando em piscinas, ou mudando para a heterossexualidade (assim se afirmava) ou mergulhando – sozinhos, sofrendo, rejeitados – em uma depressão dos infernos.”

O romance com esse histórico precisaria que uma adaptação para o cinema preservasse sua importância e, claro, tratasse como muita singeleza o seu enredo à margem dos enredos trágicos vividos por gays; Todd Haynes tornou-se essa pessoa. Apesar de poucos trabalhos no curríulo, a sua marca já reconhecida por quem assistiu produções como Longe do paraíso ou Mildred Pierce, de ser um perfeccionista na composição das cenas e no tratamento arredondado para os enredos, serviu como uma luva para a leitura do romance de Patricia Highsmith porque honrou com a presteza pedida pela narrativa. E essa sensibilidade, coisa do próprio diretor, é algo que contamina toda a produção: o espectador nota na simplicidade, elegância (e como esses dois elementos favorecem a uma atmosfera erótica sem vulgarismos) na maneira como se apresenta Cate Blanchet, quem incorpora com maestria a personagem-tema da obra.

Se o tema do amor entre as mulheres é tratado sem estereotipias, não deixa de, por baixo de seu desenvolvimento até que hajam irrupções no próprio tecido da narrativa, escape os modos do preconceito ou o drama como gays eram tratados na sociedade estadunidense dos anos 1950: basta ficar atento à maneira como o ex-companheiro de Carol reinventa o processo do divórcio no intuito de afugentar a mulher e obrigá-la a continuar com o papel fajuto de dona de casa bem sucedida, ao tratamento que se submete pelo desejo de não perder a proximidade com a filha etc. Isto é, não estamos apenas ante questões que dizem respeito ao gay nessa sociedade, mas sobre como a mulher – recém-conquistada a certos direitos – é tratada nesse contexto. No final, a possibilidade de tornar real seus desejos mais íntimos é uma maneira natural de se rebelar contra o statos quo definido sobre as mulheres, sobretudo quando de forma brilhante consegue subverter os argumentos forjados pela justiça e estabelecer as garantias necessárias de não perder o contato com sua única filha.

Nesse interesse de não perder nenhum detalhe sobre o tema principal, Haynes não se preocupa em arrastar por algum tempo o desenvolvimento da trama, que ao contrário do que aconteceria noutras produções, poderia servir a um enfado do espectador. A morosidade é de quem não prima pela extravagância, zela pela narrativa, pelo diálogo e por tornar visível o tom psicológico da obra original; e, claro, sabe dos momentos altos que injetarão um fôlego para além da linha aparentemente fixa do drama. Mesmo quando esse amor proibido se realiza em sua plenitude, tudo é tratado de maneira muito delicada; de nenhum modo o drama vivido por cada uma das mulheres de forma particular é levado ao limite da tragédia, ainda que esta não hesite em penetrar sutilmente em alguns desses momentos altos da trama. E é bonito ver como as duas incorporam o papel de não se colonizarem pelas garras do amor, principalmente Therese, a que é atraída pela postura marcante de Carol. Ao contrário, a vendedora desperta para si, para ser quem almeja ser, num processo que a colocará a altura de seu amor. Não há submissões. 

E não dá para fechar as notas sobre o filme sem atentar para o trabalho de construção do espaço e certos elementos de cena proposto por Haynes; não é só a preocupação em tornar visível as formas e respirável os ares de um tempo – condições que deixam em nós certa nostalgia sobre o passado ou de como éramos mais felizes à maneira de não estarmos tragados pelos aparelhos da recente tecnologia – é ainda a obsessão por fazer do espaço uma pista de acesso ao interior das personagens. Tal como o polonês Krzysztof Kieślowski é sua obsessão pelo emprego da simbologia das cores um toque às vezes em nada sutil para metaforizar os graus dessa paixão ou dessa vivência erótica numa sociedade de traços opressivos; daí que o vermelho se mostra de maneira diversa, como um sinal, um deixa para o espectador atento e está por toda parte, seja numa peça de roupa, na pintura de um carro, de uma casa, enfim, sempre em diálogo com certa nuance interior do relacionamento vivido pelas duas personagens.

Todos esses detalhes fazem de Carol uma leitura sincera do romance de Patricia Highsmith e com certeza ainda deve seguir cumprindo o papel que cumpriu para homens e mulheres do seu tempo: rompendo estereotipias.

* a citação é da edição de Carol (L&PM Editores).



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