Homens imprudentemente poéticos, de Valter Hugo Mãe

Por Pedro Belo Clara



O novo trabalho do autor de A desumanização tece a cada leitor seu um tenro convite ao mergulho na intimidade profunda de um Japão perdido na memória de séculos passados, um território de gentes supersticiosas e ainda sujeitas ao peso dos singulares pressupostos da sua mitologia: bosques onde espíritos sombrios vagueiam sem descanso, lagos de peixes falantes, canaviais onde o vento desfia madrigais de melancolia. Será através de tais directrizes que o autor nos levará a conhecer as personagens-base em torno das quais toda a narrativa se irá desenrolar, tomando assim o primeiro contacto com o singelo tecido com que se apresenta a dócil fímbria de mais um romance de Valter Hugo Mãe.

A história centra-se essencialmente em Saburo, um humilde oleiro que tem em sua delicada e diligente esposa, Fuyo, o amor de toda a vida, e em seu vizinho Itaro, um talentoso artesão que vive com a sua cega irmã, Matsu, e a criada da família, a senhora Kame. Vistas as circunstâncias com uma percepção aguçada, uma das mais básicas incidências do romance permite-se decifrar no facto da história crescer em torno de um desaguisado que se instala entre os dois vizinhos, ambos profundamente abalados pelas tragédias que sobre eles se abaterão. A espaços, as reacções dos demais figurinos, nomeados ora de “aldeões”, “vizinhança” ou simplesmente de “pessoas” (entre outros substantivos apropriados que não se repetem), fazem-se sentir quase ao bom estilo do coro das tragédias gregas, utilizando com uma certa frequência um tom depreciativo ou condenatório, entre benzimentos e maldições – um júri que parece exigir a justificação do acto que lhe é alheio: eis a implacável dominância de uma micro-sociedade. No entanto, é claro que o próprio romance não se limita a uma mera querela de vizinhança, mesmo que as personagens cheguem ao ponto de cultivar desejos homicidas difíceis de se conter.

Na verdade, é o elemento trágico subjacente à narrativa que se posiciona na base de todos os acontecimentos. Para além de um competente criador de leques com a capacidade de colocar toda a sua criatividade ao serviço do ofício que pratica, escolhendo até à exaustão as mais finas canas de bambu, Itaro é igualmente dotado da desconcertante capacidade de prever o futuro na morte de outros seres vivos. E é precisamente numa dessas revelações, após pulverizar um pobre besouro, de início o seu preferido instrumento de consulta, que Itaro obtém a visão que jamais quereria ter: o despoletador da espiral regressiva em que dois homens irão imergir as suas frugais existências, ao ponto de unicamente se «disputarem na dor e na miséria».

É preciso esclarecer que se as previsões não passassem disso mesmo, isto é, de meras hipóteses de realidade ainda não concretizada, nada de negro aconteceria e, por isso, não teríamos agora romance de que falar. Ou, ao tê-lo, assumiria contornos muito distintos destes de que hoje falamos. Mas acontece que a fatalidade prevista a Saburo abate-se efectivamente, e de modo lamentável, sob a sua amada esposa, e o pobre viúvo, incapaz de perdoar tamanha falha do seu cuidado, vira invariavelmente o foco da fúria para aquele que anteviu tamanha fatalidade. As dores mais íntimas, na vez de apaziguadas, são nutridas, e todo um fervor destrutivo invade o ser da dita personagem, contagiando essa outra que, mesmo não o querendo, se vê no papel de antagonista.  

A outra previsão que Itaro recebe de um novo besouro moído será diferente, mesmo em termos da sua concretização. No entanto, será o suficiente para atormentar o pobre artesão graças à crueza das suas implicações, tombando assim também ele num ciclo de obsessão e temor excessivo. Não só por si avança o jugo da morte sobre seres de maiores dimensões, na tentativa de se saber livre de tão terrível destino, como que sem que o evite em boamente vê a sua subsistência, e de sua família, seriamente ameaçada. É claro que tal poderá não ser necessariamente um prenúncio da desgraça maior, mas como tornar clara a realidade a quem já sucumbe ao peso daquilo que “haverá de ser”?

É aqui que se descortina o sentido mais brilhante deste trabalho de líricos enlevos. Pois, passando os habituais entretantos que recheiam narrativas assim, damos por nós diante do momento em que o sujeito de tal destino previsto por sua própria mão serenamente o cumpre, mesmo que em tempos idos tenha desesperadamente tentado escapar da sua opressiva sombra por sabê-la capaz de extinguir a sua existência conforme a conhecia. Deixa-nos o incidente, portanto, uma valorosa reflexão, embora num brevíssimo instante possamos ponderar sobre o quão assombroso é ver um homem sucumbir por sua própria mão a um destino já vaticinado. Contudo, agucemos os sentidos e vejamos como a chave de tudo se oculta na expressão “por sua própria mão”, pois é a mesma que permite descobrir um certo arbítrio, uma certa escolha em todo o processo. De facto, será isso mesmo o que Itaro realizará, despojando-se de cuidados e, assim, lançando o coração até altitudes onde livre pudesse dançar em paz. As tais “imprudências” para as quais o título da obra já nos pretende avisar:

"Lembrou-se, olhar para sempre. Caçar as imagens e viver de pensar. (…) Ser como um elemento da universalidade. Saber apenas das ideias, a essência de cada coisa. Ficar livre. Itaro pensou, ficar livre".



Não existe crise que não conheça o seu fim. Aliás, o cerne na questão não se prende com a certeza factual da finitude da dita crise, mas como dela sairá o ente que a terá de atravessar, com que feridas, com que vivências, com ou sem catalisadores de mudança. Pois tudo, no seu tempo devido, encontra invariavelmente o seu lugar: Saburo libertar-se-á do peso da sua perda, Itaro operará a transformação profunda que sente necessária em sua vida. Até esse dia, trilha-se um caminho de fúrias mal contidas, culpa não digerida, perdões calados há demasiado tempo, expiações que não admitem adiamentos. Algures no seio dessa toada cadente, a compaixão humana aflora.

À semelhança de muitos outros trabalhos de Valter Hugo Mãe, é este de modo idêntico um romance profundamente poético e de linguagem limpa e trabalhada sob moldes fluidos, amplamente rico tanto pela beleza como pela crueza das imagens que sugere, um autêntico testemunho de como a língua portuguesa detém uma considerável elasticidade, tal o modo como o autor encontra novos sentidos nas frases mais gastas. Curiosamente, o texto bane toda a exclamação e interrogação possíveis, o que em certos momentos poderá convidar o leitor tombar na armadilha monocórdica que a narrativa aparentará assumir nesses instantes. No entanto, sublinhe-se, torna-se uma vez mais óbvio o poder criativo do autor e a sua desenvolta capacidade imaginativa, que aliadas a um senso poético refinado, fruto de uma sensibilidade também ela apurada com primor, fazem de Valter Hugo Mãe justamente uma das mais proeminentes figuras das letras nacionais do século XXI. Mas talvez mais pertinente do que essa mera apreciação sejam os inegáveis factos que por seus consequentes (entenda-se pelo seguinte: os livros que escreve) não obscurecem o carácter do autor, também ele, é certo, e como convém em casos de singularidades análogas, um homem “imprudentemente poético”.

“Algumas flores de cerejeira percorriam o chão. Iam no vento. O perfume das belas árvores repartia-se pelos lugares dos aldeões. O sol caminhava ao contrário, como se fosse de volta ao centro da floresta, a ver o rosto mais belo da morte. A antiga origem”.


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Deixou pouco para minha própria criatividade.

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