Kárita e Kundera

Por Rafael Kafka



Quando conheci Kárita, lembrei-me da primeira experiência tida por mim ao ler A insustentável leveza do ser. Eu ainda era o Rafael que lia os livros pensando encontrar uma resposta concreta para os dilemas que se me apareciam na vida e levaria ainda anos para entender que muitas vezes a simples reflexão e exercício de crítica são as respostas melhores por indicarem mudança de olhar e direcionamento para além do óbvio.

A primeira cena narrada deste romance é a de quando o autor supostamente encontra Thomas pela primeira vez. Ele então introduz um elemento muito comum em sua obra: uma reflexão a qual para leitores como o meu eu de 17 anos pode soar um andar em torno de nada para chegar a lugar algum. Curioso que reli o livro um ano depois da primeira vez na qual o lera e passaria dez anos mais ou menos sem ler nada de Kundera, até me deparar com o excelente A imortalidade.

As reflexões existenciais de Kundera passaram a me encantar ainda mais, pois não têm a ambição de serem respostas precisas sobre esta ou aquela noção metafísica. O autor usa seus personagens não para explicar a existência e sim exemplificar condutas humanas. Porém, amante do romance que muito bem escreveu sobre esse gênero nos textos que compõem Testamentos traídos e A arte do romance, Kundera reconhece ser a maior qualidade romanesca a imprecisão, a incerteza, a escrita a qual a cada momento se rompe os limites certos de uma escrita que se propõe detentora de uma verdade.

Assim, a espécie de psicanálise existencial feita pelo autor em seus livros mais clássicos e bem escritos vai ampliando nosso olhar sobre o ser humano. Não foram raras as vezes que, após concluir uma leitura de Milan Kundera, senti-me cheio de pensamentos os quais não conseguia formalizar bem em palavras. A visão do humano era tão plena nesses momentos que só me restava sentir sem ter como precisar bem as sensações.

Kárita me faz pensar na noção romanesca de Kundera, a qual possui muito de metalinguagem revoltada, no sentido camusiano do termo: o que importa é escrever ou viver sem pensar muito em formular modos de ser e existir prontos e fechados em si. Eu me deparei com Kárita da melhor forma que poderia ser: em um cinema, por acaso. Pois encontros casuais são carregados de poesia, pois por meio deles temos uma estranha sincronicidade que explica perfeitamente bem a beleza absurda da vida.

Desde que a conheci, Kárita me fez pensar em uma outra forma de existir além da provinciana que parece dominar minha cidade. Eu via nela a ambiguidade poética de um ser além de rótulos fáceis e que se propunha a viver a beleza presente em cada instante. Até hoje, poucas pessoas falaram de forma tão bela sobre cinema e literatura a meu ver. Poucos antes de nos afastarmos por motivos pessoais e profissionais, lembro-me de ouvir uma fala sua que muito sintetiza, desde então, um sentimento de religiosidade perante a vida, para falar como Mário de Andrade:

-Essa música me faz sentir que a vida vale a pena ser vivida.

Não lembro agora qual música era. Poderia ser do Belle & Sebastian ou do Arcade Fire, duas bandas que conheci na mesma época em que a conheci. O certo é que Kárita naquele momento me fazia achar as palavras certas para descrever a sensação causada em mim por toda boa arte: o sentimento de que viver vale a pena.

Ontem eu fui assistir a um filme de nome Eu, Daniel Blake, o qual merece uma resenha bem pensada minha. Após a sessão, decidi-me a ficar para um show de um grupo de choro de grande qualidade e ao final de duas horas no espaço cultural SESC Boulevard mandei uma mensagem a Kárita expressando, mais uma vez, gratitude por conta do amor à arte que ela incutiu em mim.

Em 2009, época de meu encontro com Kárita, eu estava começando a me aprofundar na arte do cinema e queria muito me tornar o tipo de indivíduo que está o tempo todo em contato com arte, respirando arte, difundindo arte, para que mais e mais pessoas pensem como viver vale a pena. Desde ali, Kárita me fez pensar nos bons livros lidos por mim os quais apelam para a ambiguidade para falar dessa coisa sem categoria precisa a qual é a existência humana.

Mas em minha memória afetiva, ela sempre se ligou aos romances existencialistas kunderianos com suas reflexões que mais do que definirem o ser humano expressam o quanto somos indefiníveis.

Lembro com carinho de um de nossos últimos rolês. Voltávamos do Cine Olympia aonde tínhamos ido para assistir algum filme, o qual também não lembro qual seja. A presença de Kárita inebria tanto minha memória que chego a pensar que tudo o mais se torna acessório para mim. Decidimos parar para comprar um copo de 500 ml de uma cerveja bem barata e seguir curtindo a pequena chuva a qual caía na cidade. O vento frio e o sabor da cerveja se fundiam, fazendo-me sentir a volúpia de que tudo valia a pena. Como há muitos anos ocorria em minha vida, a voz de Kárita inebriava meus pensamentos e eu me sentia feliz, leve e capaz de tudo por ter aquela pessoa ao meu lado.

E talvez seja esse meu erro no final das contas: sentir que poderia fazer tudo e poluir muita coisa com atos inconsequentes e egoístas. E egocêntricos.

Morava em São Brás, bairro central de Belém. Andaríamos até perto de casa, eu pegaria ônibus com ela, a acompanharia até perto de sua casa e voltaria feliz por ter prolongado ao máximo nosso encontro. E a presença ambígua e profunda seguiria em mim, como a memória de um bom romance lido, presente no calor do mais doce dos abraços já dados, repetido à exaustão por anos.

E mesmo hoje, tanto tempo sem esse abraço, eu me pego feliz por lembrar dele em um dia duro, difícil e trágico. Porque o calor persiste e mostra que no final das contas viver segue valendo a pena.

***


Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.


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