Wollstonecraft e Shelley: uma relação umbilical

Por Alejandra M Zani






É certo que a historiografia tem resgatado sua obra, sobretudo com o impulso do novo feminismo que tem levado a sério o trabalho de reescrita das biografias de mulheres que deram cor à tarefa de pensar sobre elas num mundo há muito marcado por seu esquecimento. Mas ainda assim, Mary Wollstonecraft continua sendo, para muitos, apenas a mãe de Mary Shelley (Godwin, seu tratamento de quando solteira); já esta é sempre a autora de Frankenstein.

O nascimento de Mary Shelley é um dos mais famosos da literatura. Aconteceu em 30 de agosto de 1797. Enquanto o médico retirava o bebê, introduzia-se os germes de uma das enfermidades mais perigosas da época: a febre puerperal. Wollstonecraft morreu semanas depois do parto. Qual é a marca que pode deixar uma mãe na vida de sua filha em tão curto período de tempo?

É essa relação entre ausências e presenças, uma relação de pegadas distantes mas certeiras, o que Charlotte Gordon tenta reconstruir na biografia Romantic Outlaws: The Extraordinary Lives of Mary Wollstonecraft & Mary Shelley (publicada no Brasil pela Darkside). No ano do segundo centenário de Frankenstein, Gordon assegura que o radicalismo filosófico da mãe foi muito importante para Shelley, que depositou seus sentimentos sobre a injustiça e a opressão numa criatura que se transformaria numa das personagens de ficção mais conhecidas de todos os tempos.

Educada por um pai que nunca superou totalmente a viuvez, Shelley quis ser a filha ideal. Mas, apesar dos esforços de sua mãe no passado, em princípios do século XIX as mulheres artistas eram monstros por definição, como escreve Gordon, e continuava-se a acreditar que o dever delas era o de criar bebês, não arte. A surpresa quando se descobriu que autoria de Frankenstein era de uma mulher foi tanta que as vendas do livro caíram drasticamente por esse motivo.

Numa das grandes ironias da história editorial, Frankenstein não deu um só centavo em direitos à sua autora, relata Gordon em seu livro. A primeira edição do romance de Mary foi revista pelo seu companheiro, o poeta Percy Shelley, mas nos anos seguintes, e depois da morte dele, ela continuou reescrevendo sua obra até dar por terminada em 1831 com um Frankenstein muito mais crítico com a sociedade que descreve os prejuízos provocados pela ambição e pela ganância humana (masculina) e o afã do poder.

Quando Mary Shelley morreu, em 1851, sua visão como a mulher de um grande poeta se espalhou quase por um século. Foi apenas na década de 1970 que esse estatuto – e o papel de sua mãe – foram resgatados pela onda feminista para sua revogação. Mas a compreensão sobre a influência do trabalho de uma no da outra foi processo bastante lento: até há pouco, escreve Gordon, os leitores não entendiam a incidência dos ideais de Wollstonecraft em Mary Shalley. Sua obra se destaca pelo compromisso com os direitos da mulher por sua recusa e condenação do extremo domínio masculino. Durante toda sua vida defendeu a filosofia de sua mãe e em 1827 escreveu a um amigo: “A memória dela tem sido sempre o orgulho e a inspiração de minha vida”.

Em pleno século XVIII, Mary Wollstonecraft foi capaz de se estabelecer como escritora profissional e independente em Londres, algo raríssimo para a época. Filha de um pai alcoólatra, violento e disposto a dilapidar a fortuna familiar, viveu parte de sua vida em Hoxton, onde se refugiou para escapar de algumas dívidas pendentes de seu pai.

Há poucos metros de onde vivia, morava William Godwin, com quem se casaria. Há raríssimas situações que ilustram melhor a divisão entre os homens e as mulheres de classe média do século XVIII que o período vivido pelo casal em Hoxton, escreve Gordon. Os dois viviam a poucas centenas de metros de distância embora estivessem vitalmente próximos: ela cuidando das irmãs e absorta na ordem de sua família, ligada aos livros, estudando filosofia política e latim. Ficava de fora, como todas de seu tempo, dos debates da época.

Sua curiosidade intelectual foi satisfeita quando, num passado, seu vizinho Henry Clare e sua companheira a convidaram para tomar chá e descobriram que Mary não era como as meninas de sua idade, preocupadas com a moda e com o casamento. Logo, Henry, um homem taciturno que havia dedicado sua vida ao estudo da poesia e da filosofia, cedeu à jovem o acesso ao seu próprio templo de livros. Foi ele quem a colocou em contato com o pensamento de John Locke e seu contrato social, de quem Wollstonecrafat se apropriaria como a única resposta possível sobre a injustiça da qual era vítima.

Já em janeiro de 1792 era apresentada às livrarias e bibliotecas sua obra Reivindicação dos direitos da mulher. Basta abrir o livro para que apareça em cena Mary com voz clara e penetrante, descreve Gordon. Mary depreciava a ideia de que ser delicada fazia as mulheres serem mais atraentes. O progresso, para ela, requeria uma mudança drástica na imagem que se formava sobre ambos os sexos e em sua relação. Wollstonecraft declarava que seu livro era essencial para o futuro da humanidade. E assim tornou-se.

* Este texto é uma tradução de "Wollstonecraft y Shelley: una relación umbilical", publicado em El Mundo


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