Ideologia


Por Rafael Kafka



Em uma barca Rio-Niterói, um policial é informado de que um grupo de militantes de dado partido de esquerda pretende fazer campanha política dentro do veículo, algo proibido pela legislação eleitoral do estado e pelas normas da empresa que gerencia o serviço das barcas. O policial decide usar da truculência para impedir a suposta ação, a qual parece se resumir apenas a um selfie a ser postado nas redes sociais de uma candidata à ALERJ, apontando uma arma para os militantes políticos e a vereadora aspirante à deputada que com eles estava. Em dado momento, alguém diz que armas matam – em uma tentativa de conscientizar o policial do risco trazido às pessoas – o que gera a curiosa atitude responsiva:

– Ideologia mata muito mais.

Além da já habitual violência das forças de segurança, treinadas com o intuito exclusivamente repressivo, temos nessa situação um claro exemplo de ódio ideológico tão propagado pelas mídias sociais nos últimos anos, culminando num perigoso clima de polarização política. Em seu discurso, o trabalhador da polícia militar cita de forma implícita os milhões de mortes causadas pelo comunismo real. Como boa parte do povo o qual defende bandeiras mais conservadoras e liberais no sentido econômico do termo, este cidadão parece ignorar os milhões de mortes ainda causadas pelo sistema capitalista diariamente nas ruas de suas cidades. Para tais seres, o sistema capitalista não é, na verdade um sistema, e sim um conjunto de leis naturais, absolutas. As mortes causadas pela desigualdade são, portanto, colocadas numa outra esfera.

O maior exemplo disso é a corrupção. Ela recebe genericamente a culpa de tudo o que dá errado em nossa sociedade. Como a visão das massas ainda é muito controlada pelos maiores veículos de mídia, o foco do rótulo “corrupto” recai em governos e políticos em tese de esquerda, opositores ao pensamento dos grandes conglomerados de comunicação. Por esse motivo, a esquerda brasileira sofre com a pecha de corrupta em “osmose” a tudo o que é sofrido de ataques aos mais recentes governos à esquerda que tivemos. Um fato curioso é uma constante transferência para a esquerda, inclusive, de fracassos políticos os quais historicamente são tidos como de direita, casos do nazismo e do fascismo, no âmbito internacional, e de partidos os quais ostentam a social democracia em seus nomes, mas praticam cartilha neoliberal com franco amor pelo fundamentalismo cristão e privatismos.

Revela-se em todo esse contexto a visão de esquerda como ideologia, como algo entre parênteses. O senso comum, combustível de políticos como Jair Bolsonaro, é visto como absoluto. Isso se dá tanto nos discursos defendendo menos regulação do mercado, defendendo a exclusão dos programas sociais, quanto nas afirmações de que bandido bom é bandido morto. As afirmações essencialistas são a realidade do cidadão de bem maniqueísta, o qual coloca o outro numa ótica de estranhamento, dotado este outro de um discurso cuja tipificação já indica fugir da ordem normal das coisas.

“Ideologia mata muito mais” é a fala de um agente de segurança treinado para defender a ordem, que vê no discurso a questionar a lógica maniqueísta na qual ele vive uma ameaça a ser eliminada. Para esse agente, qualquer fala de mudança é ideologia, falácia, manipulação. O comunismo matou milhões, mas no capitalismo se morre de fome, de doença, não por conta do sistema que se alimenta da desigualdade social. O capitalismo é vivido como selva na qual somos livres para lutarmos contra a desigualdade e a adversidade ou sucumbir a ela. A ideologia da meritocracia é defendida nesse contexto como a verdade acerca do darwinismo social de que não temos como fugir.

O discurso conservador/liberal é um discurso focado na liberdade individual, mas com uma concepção de liberdade não situada, ignorando como o espaço e outros fatores socioeconômicos afetam as escolhas, os passos e o modo de agir dos sujeitos. Falar contra programas sociais, por exemplo, se justifica na premissa de que o sujeito deve agir “sem ajuda” e sem atrapalhar os outros, onerando esses outros com uma carga tributária pesada. Em tudo o discurso capitalista neoliberal se assemelha à assunção de leis naturais absolutas. Por esse motivo, cada vez mais se usa o discurso bíblico no sentido de afirmar as verdades dessa modalidade do capitalismo como de existir absoluto e verdadeiro.

Afinal, em nosso meio social o cristianismo assume imenso poder de verdade e suas falas e premissas são guias relevados por quase todas as pessoas teístas. O âmbito espiritual e religioso serve de fator super estrutural para justificar e ratificar o âmbito político. Isso recai em outra consequência: tudo aquilo que foge de dada normalidade é tido como ameaça, como comunismo. A maior emissora do país cada vez mais falando de temas ligados às pautas feministas e LGBTQ+, a emissora que apoiou o golpe militar e em 2013 assumiu a culpa em meio às jornadas de então, em ato o qual cada vez mais revela a intenção de subverter a lógica daqueles protestos para algo mais conservador e sectário, essa emissora, maior símbolo dos grandes oligopólios que mandam no país é vista como comunista por fugir da lógica hétero cisgênero.

Mal sabem essas pessoas que essa fuga nada tem de comunismo, de revolucionário. É o capitalismo mais liberal se aproveitando das pautas sociais para ganhar fundos, para ter mercado aquecido. Porém para elas saberem disso precisam colocar entre parênteses sua noção de capitalismo, de sociedade baseada no lucro. Elas precisam entender que vivem em um sistema social, em um conjunto de ideologias, que no âmbito social não há nada parecido com leis naturais. Somente o hábito de leitura crítico pode trazer essa possibilidade. Não à toa, cada vez mais os espaços de leitura, dentro e fora da escola, são atacados e nas brechas de tanto sucateamento vamos procurando formas de levar leituras a nossos alunos para eles não aceitarem nada como absoluto, natural, ahistórico.

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