Plataforma, de Michel Houellebecq



Por Pedro Fernandes

Michel Houellebecq. Foto: Alessandro Albert


“Os órgãos sexuais existem como fontes permanentes e disponíveis de prazer. O deus que criou nossa desgraça, que nos fez efêmeros, vazios e cruéis, também previu essa forma de débil compensação. Se não houvesse, de vez em quando, um pouco de sexo, em que consistiria a vida? Um combate inútil contra as articulações que endurecem e as cáries que se formam. Tudo, ainda por cima, absolutamente desinteressante – o colágeno que anquilosa as fibras, a criação de cavidades microbianas nas gengivas. Valérie abriu as coxas bem em cima da minha boca.” A passagem em destaque está no capítulo 7 da segunda parte, de três, “Tailândia tropical”, “Vantagem competitiva” e “Pattaya Beach”, do romance Plataforma, de Michel Houellebecq. E a menção logo à entrada deste texto desempenha o papel de compreender ao menos três aspectos concernentes a esta obra.

O primeiro se refere ao narrador e à maneira de narrar característica do escritor francês. Integrado à tradição literária de seu país, sua obra não cumpre apenas um papel tácito de filiação ao cânone pela maneira como constrói sua narrativa, mas de um refazimento de dentro para fora das forças criativas, ao mesmo tempo que sua ampliação, reabrindo outros caminhos no interior da ficção francesa enquanto a reabilita ao lugar de destaque das produções literárias universais. Michel Renault, o narrador, equilibra-se entre o relato sobre o cotidiano comum de um intervalo de tempo situado entre uma viagem à Tailândia e o relacionamento repentino com Valérie enquanto tece uma variada leitura sobre o seu mundo, não o de questões subjetivas (estas apreendidas apenas pelas ações e seu comportamento), mas o de generalidades acerca dos principais pilares do modelo social vigente, o que finda por estabelecer uma interpretação mordaz sobre o estágio contemporâneo da civilização humana.

As fronteiras entre o que poderíamos designar, a partir disso, como duas linhas constitutivas desse romance não estão avivadas em separado, como se oferece nas tradicionais obras de ficção que desempenham certo papel de um tratado; diríamos que essas fronteiras são inexistentes uma vez que tais linhas funcionam pela abrupta intervenção uma na outra. No caso do excerto apresentado, o leitor não deixará de perceber o salto da exposição reflexiva sobre o papel do sexo na existência para a descrição das ações desempenhadas pelo narrador. Isto é, ação e reflexão formam um todo simultâneo. Tal variabilidade de tons propiciam uma dinâmica da narrativa ao ponto de, mesmo nas ações mais enfadonhas, como poderiam ser as que se dedicam escanear o dia-a-dia num mercado de negócios de uma poderosa rede hoteleira, atravessarmos sem quaisquer turbulências. Isso é talvez um manejo de escrita que muitos dos nomes mais importantes da literatura moderna-contemporânea não têm alcançado. É que, na maioria das vezes, esses criadores se esquecem de um princípio fundamental da arte de narrativa: contar uma história.



Obviamente que é impossível resumir Plataforma a um assunto específico, uma vez ser este um grande caleidoscópio sobre as principais inquietações do nosso tempo. Mas, não passará em branco, pela miríade de narrativas sobre o desfrute dos corpos, que é pelo olhar do sexo e do corpo como força desejante que o narrador de Houellebecq observa as relações humanas e daí extensa parte das bases sociais. Essa posição, em parte justificada pela tese formulada por Michel Renault exposta na introdução destas notas, parece negar o fogo fátuo do amor romântico, talvez, uma das críticas mais substantivas neste romance e pouco reparada pelo leitor: sim, esse amor já não se mostra mais usual contemporaneamente porque é uma farsa burguesa, mas nas situações em que seus últimos suspiros não mais atuam permaneceu um vazio porque muito nos falta uma educação pelo corpo ou a compreensão deste como zona infinita entre dar e sentir prazer e não um instrumento para e de controle, como sucede nos tabus ou no critério da obrigação de uma fidelidade. A acentuada condição narcisista aliada à repreensão do sexo são também em parte responsáveis pela nossa posição no mal-estar no mundo. Nesse sentido, Michel Houellebecq constrói um retorno às teses de Freud sobre o amor, tais como o princípio segundo o qual a sexualidade é a fraqueza e força de todos.

Que a vida de Renault se nutra de algum sentido depois do seu envolvimento com Valérie é algo a se discutir, mas não é possível negar que as duas personagens se tornam outras a partir do reconhecimento mútuo do desejo. A existência dele é, pelo seu próprio ponto de vista, desenxabida; constitui-se em repetir quase mecanicamente os mesmos gestos para os quais foi adestrado para a condução do seu trabalho e o ócio preenchido com passatempos que vão de ver televisão, masturbar-se vendo pornografia, a leitura ou os itinerários em busca do sexo, como a viagem que faz à Tailândia. Michel Renault finda por ser um retrato extremamente fiel do homem de classe média engendrado no interior dos aparelhos sociais capitalistas. Talvez sua melhor distinção seja a de, mesmo trabalhando com um modelo repetitivo (e portanto questionável) de arte, encontrar na literatura (termo utilizado aqui na sua mais ampla acepção) uma afirmação de sua condição de alheado no mundo do qual participa com profundo desinteresse.

O imbróglio sexual entre Renault e Valérie servirá ainda no aprofundamento de outras questões relativas à sexualidade, seja a descoberta do corpo como uma potência erótica, isto é, a confirmação freudiana de que somos seres sexuais desde sempre, seja a de compreender que todos os relacionamentos amorosos não se definem por uma força unipolar e sim pela ambivalência, seja a descoberta que na relação amorosa o outro se torna parte nossa, seja ainda a reafirmação da ideia segundo a qual a fantasia é o elemento principal na excitação sexual e logo na manutenção da união, o que nos propicia repetir as palavras do poeta, a eternidade do / no amor se manifesta como passagem. Na mesma ordem freudiana, Renault e Valérie reafirmam que a pulsão dos corpos para o sexo não está a serviço da reprodução e tem por meta unicamente o prazer, sentimento cada vez mais incomum na contemporaneidade ainda que socialmente tenhamos criado infinitas possibilidades de realização dos prazeres, e, muito possivelmente porque todas essas inovações são estratégias de negação das pulsões do corpo erótico.

Aqui se instala a visão crítica sobre o mundo. Esta averigua não apenas na transformação do sexo em objeto capital no mercado dos prazeres, como não poupa críticas aos valores culturais centrados numa base unilateralista, seja a obtenção do lucro a qualquer custo e a escravização das pessoas para este fim, seja nos modelos nacionalistas ou fechados na crença universal de uma só verdade. Aos olhos de Michel Renault, a deidade globalização é só mais uma máscara sobre a uniformização das culturas, isto é, uma potência que realimenta alguns dos mesmos lugares dos nacionalismos. O resultado é um embrutecimento da humanidade e sua condenação ao simplismo, à mediocridade, ao vulgar, ao rasteiro e à barbárie. E isso não é produto de nenhum saudosismo, porque não se pode, obviamente, sentir saudades do que não existiu. Quer dizer, a verdade mais dura, e contra a qual nunca lutamos sinceramente, é como verdadeiramente somos criados para o fracasso simplesmente porque não conseguimos – apesar de sabermos bem os caminhos – romper com o nosso pior. Plataforma instaura parte dessas forças. Ah, se a literatura fosse o possível capaz de fazer existir as subversões que necessitamos! Possivelmente não estaríamos dando voltas continuamente em torno da mesma escuridão depois de leituras como a desse romance de Michel Houellebecq.

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