Pequenas notas críticas das memórias de Raymond Aron


Por Rafael Kafka



“As ideias matam, falei, mas a beleza e fragilidade do liberalismo está no fato de não abafar as vozes, mesmo as perigosas”, diz Raymond Aron em suas Memórias, na página 780. Na frase em destaque, percebe-se bem o clima da guerra fria, com a visão da chamada democracia liberal sendo garantidora da liberdade política plena. Aron se refere nela a uma “nova direita” que já nos fins da década de 1970 visava à tomada de poder com seu discurso autoritário e repleto de xenofobia, percebida mais especificamente na figura de Benny Levy.

Dentro da lógica de um liberal, as visões aronianas são coerentes igualando os posicionamentos de tal nova direita com os regimes totalitários fascistas e comunistas. A democracia liberal é vista por esse teórico como uma espécie de terceira via diante desses dois tipos de totalitarismo e uma forma de regime que permite melhorias sociais e liberdade concomitantemente.

Desse modo, cai por terra certo argumento de que a direita liberal é menos focada, para não dizer completamente desfocada, do conceito de justiça social. Em sua visão de redução do aparato estatal da economia, liberais defendem  modelo econômico o qual a sua maneira busca controlar a injustiça social, pois eles, assim como Thomas Piketty, não consideram a desigualdade social por si mesma como algo ruim. Nesse sentido, ideias liberais estão no cerne de práticas discursivas, às vezes usadas por indivíduos mais ligados aos ideias de esquerda, de defesa de pautas identitárias e de gênero, por exemplo. Obviamente, pode-se ver em tais práticas um mero interesse econômico das grandes elites, cada vez mais evidente no modo como o mercado se apropria das pautas sociais em questão, mas é mais efetivo captá-las e criticá-las por meio de uma análise acurada de seus pressupostos.

De qualquer forma, a visão de Aron expressa na frase de abertura desse texto reforça a necessidade de se pensar em um modelo de pensamento que respeite a liberdade de expressão, não reprimindo certas formas de enunciação contrárias, exigindo do sujeito leitura de si e do outro para realizar a sua contestação dentro do campo das ideias, o que não significa absurdos como defender a liberdade de expressão para um nazista. Muitos setores da imprensa dizem que militantes de importantes partidos de esquerda geraram uma onda reacionária de intolerância, algo com o qual provavelmente não se tem como concorda plenamente. Contudo,  a atitude de militantes com um conservadorismo mais raivoso marcada pela negação da leitura de textos críticos a dados políticos, em especial o atual presidente, lembra por demais a velha prática desses setores esquerdistas os quais se negavam a ler veículos de imprensa ligados à grande burguesia, o que de repente poderia promover um discurso crítico em relação aos modelos editoriais então em vigência.

É importante conferir as formas de discursos usadas pela oposição para dentro do plano discursivo se elucidar a práxis enunciadora. Muitas vezes prende-se demais às palavras de ordem e conceitos pré-fabricados para em vociferações defender verdades de um ponto de vista mais egóico. Esse é um fenômeno o qual se torna mais evidente em tempos de militância  fervorosa sem tanta leitura de si para embasar alguma leitura do outro.

Mas há problemas nas teses de Aron, apesar da importante metacrítica presente nelas, as quais deixam claros a defesa de fenômenos bizarros como “nazismo sendo movimento de esquerda”. O eco ao argumento de Friedman em seu Capitalismo e Liberdade, defendendo uma visão de que mesmo dentro do capitalismo o comunismo pode ser expressado como uma visão política, revela-se problemático quando este teórico se aliou à ditadura de Pinochet, subserviente à “luta pela liberdade” dos Estados Unidos, para ditar os rumos de um regime militar dos mais sangrentos que o mundo já viu. A ditadura chilena, mencionada por Aron como algo por ele repudiado, é um fato cuja essência é negada pelo próprio pensador, o imperialismo americano, ao mesmo tempo em que ele se refere a um imperialismo soviético para falar do modo como a União Soviética esmagava politicamente as suas nações satélites. Aron afirma que os Estados Unidos nada têm a ver com a miséria dos povos latino-americanos e não fica claro ao menos nos relatos memorialísticos se ele consegue explicar plenamente  dessas ditaduras, que pulularam dentro do continente ao mesmo tempo que a política externa norte-americana começou a se preocupar com o surgimento de novas revoluções no estilo de Cuba.

Ele dedica diversas páginas a uma análise dos traços da diplomacia da guerra e talvez neles encontremos, na defesa das ações estadunidenses na Coréia e no Vietnam, a justificativa tímida e não assumida das ditaduras militares que nega ter relação com um imperialismo americano. Fica evidente no discurso de Aron uma análise profunda do pensamento de Marx como algo válido em si mesmo, mas deturpado em sua aplicação nas nações comunistas; ainda assim seria interessante um maior reconhecimento de como as teorias liberais muitas das vezes também foram aplicadas no sentido de defender e justificar projetos de poder claramente despóticos. Cabe aos críticos dessas ideias mostrar os exemplos de tais apologias, ao mesmo tempo em que se mostra como na prática elas falham no combate à injustiça social.

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