“Mais uma madalena, por favor!”

Por Lourenço Duarte

Ilustração: Nancy Liang



Revisitar o passado sempre pareceu uma das grandes obsessões poéticas e literárias de sempre. Disputando o pódio com o amor, ou Amor, e a morte, as lembranças distantes assumem-se como um forte motor da poiesis, da criação. E é ao debruçarmo-nos um pouco mais sobre o tema que vemos surgirem certas premissas, por vezes opostas, acerca deste movimento de retorno: o ser que relembra em nada difere do conteúdo relembrado, do sujeito ido?; será impossível à pessoa atual transportar a sua consciência pelas coordenadas do tempo até ao instante remoto?; finda a memória, permaneço o mesmo, ou trago já no bolso da existência aquele que recordei? Estas seriam algumas das questões pertinentes a colocar.
 
A primeira ideia é bastante sedutora. De facto, assim como a crença de não estarmos a sonhar, quando o estamos, também as memórias nos fazem acreditar que nada é, naquele momento, mais do que aquilo que é. A velha questão cartesiana. Assim sendo, quem somos senão aquilo que estamos a pensar ser? Haverá razão para exilar as recordações rumo ao reino do cogito, do pensamento, e lá mantê-las prisioneiras? Proust já parecia tender para a resolução deste enigma, ao banhar de poder as famosas madalenas que, quando provadas, permitem à personagem a viagem acima dita. Talvez seja seguro afirmar a metamorfose ôntica como consequência da recordação sofrida.
 
Mas nós, os seres humanos, somos, por excelência, eternas transformações. Da criança com medo da sombra dos ramos projetados na janela, evoluímos para pessoas mais maduras, pessoas com outras questões metafísicas. Não querendo desvalorizar a sombra dos ramos projetados na janela — o que até parece terrivelmente assustador! — poderíamos até achar, hoje, alguma graça à infantilidade de tais receios. Mas eles existiram! Esses episódios pertencem ao mundo do factivo, do real, assim como a certeza de que o sol nascerá. Logo, são fenómenos verdadeiros a que podemos aceder sem a necessidade da imaginação, quase como quem consulta um compêndio de leis antigas.
 
Só que é exatamente aqui que a trama se adensa, no deformar dos factos pela imaginação. Assim como o livro que, lido há uns anos, nos dizia umas coisas, e hoje parece dizer outras, também as memórias se assumem como uma espécie de plasticina à mercê da pessoa atual. Daqui apenas decorrerá que lembrar nunca poderá ser sinónimo de reviver, mas sim de insinuar, de sugerir. Entre a coisa lembrada e a coisa acontecida, há alguém a manipular tudo pela via da perceção. Se me pico numa rosa, automaticamente altero a memória de todas as rosas que vi, cheirei ou pensei, nem que apenas de forma ligeira. A memória afigura-se, pois, como um eterno espelho, um quadro ao qual se acrescentam novas versões por cima das anteriores. O estado epistémico em que me encontro possui efeitos retroativos absolutamente avassaladores!
 
E esta ideia, para uns triste, poderá também ser belíssima para outros, ao comprovar o pensamento hegeliano de que nos encontramos em perpétua síntese, antítese e tese. Ousamos, por defeito ou virtude, bater sempre as asas, vagueando pelos ponteiros do tempo rumo a lado algum. E isto, senhoras e senhores, é magistral!

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