Os dias perfeitos, de Jacobo Bergareche

Por Sérgio Linard

Jacobo Bergareche. Foto: Lupe de la Vallina.


 
Que todas as cartas de amor são ridículas, sabemos e, em muitos casos, até as escrevemos. No entanto, todo autor de cartas de amor é igualmente ridículo? Em que momento a carta de amor deixa de ter sua natural “ridicularidade” e passa a ter uma máscara de ridículos impulsos apaixonados? As duas cartas (uma delas é transformada em e-mail) que compõem o romance epistolar Os dias perfeitos podem não responder explicitamente a essas perguntas, mas ajudam a lançar luz sobre elas e sobre outras questões capazes de ajudar a compreender com melhor clareza ideias por vezes envoltas na obscuridade do cotidiano.
 
Amores, dias bons, reciprocidades, companheirismos e cumplicidades são objetivos que, de tanto serem explorados com certa naturalidade, acabam alocados em um arenoso terreno da indefinição, posto que se luta por eles, mas sem se ter ideia exata de que ou de como eles são. Empreende-se uma vaga jornada que pode ser concretizada no aqui e no agora, mas que, sem a presença de um grande feito, perdem a validade e, por isso, parecem não ter acontecido. Retorna-se, então, a mais uma busca pelos dias perfeitos, pelos amores, pela cumplicidade etc. Como o caso de Luis1, autor das cartas que lemos em Os dias perfeitos, que parece já ter muito do que procura em casa, mas sente ser preciso buscar mais.
 
“A lembrança de como foi um dia perfeito é importante, mas é ainda mais importante estar aberto a tê-lo.”
 
A atividade de escrita envolve uma multifacetada possibilidade na qual o escritor consegue encontrar-se e desencontrar-se diante do escrito ou, ainda, ter melhor visibilidade do que efetivamente sente, uma vez que o momento de quietude necessário ao labor com as palavras permite algum grau de conscientização acerca das situações vividas. A reflexão proposta pelo emitente da segunda carta de Os dias perfeitos é aquela que acontece em momentos nos quais as pessoas conseguem se dar conta ou, pelo menos, questionarem-se sobre qual é a parcela de culpa que elas têm diante do sofrimento em que elas se encontram.
 
Enquanto o autor de cartas de amor ridículas, impelido pelo natural sofrer do amor irrealizado e — comumente — idealizado, encontra nesse etéreo amor a raiz de suas dores, o escrevente de cartas de amor sinceras e maduras percebe que parte de seu sofrimento é também gerada por si e pelas próprias escolhas. O problema pode surgir, porém, quando essas cartas são escritas com foco em gerar específicas reações em seus interlocutores, uma consideração muito comum para aqueles que conhecem minimamente as necessidades intrínsecas ao manejo com a coisa escrita e, cabe lembrar, Luis é um jornalista.
 
Aquele Luis que escreve para sua amante, Camila, e para sua esposa, Paula, domina muito bem a linguagem de convencimento escolhida, algo que realça, da parte do autor, um igual domínio quanto à construção da dicção desse personagem. Há um desafio em tela para a estruturação de ambas as cartas lidas, porque precisava-se de que, em um mesmo período, aquele homem conseguisse escrever uma ridícula carta de amor e uma sincera carta de amor, mesmo diante da compreensão de que um tipo não seja necessariamente excludente do outro.
 
 Nessa seara, o romance de Bergareche é caso exemplar para se pensar nas possibilidades construtivas de diversas faces para o mesmo sujeito, como é próprio à humanidade. Ao colocarmos Os dias perfeitos em evidência diante de outros escritos também epistolares, somos remetidos a diversas possibilidades de diálogos literários. No entanto, em uma breve comparação, por exemplo, com Gente Pobre, romance de estreia de Dostoiévski2, vemos que o caso de Luis apresenta-se diante de uma maior complexidade e aprofundamento psicológico do que aquele senhor apaixonado das cartas do autor russo, pois aqui se constrói um escrevente que engloba em seu ethos comportamentos para além da irracional e irradiante paixão, motivos do fazer-se ridículo. Enquanto o apaixonado do primeiro romance de Dostoiévski é visto como uma pessoa com um único desejo a ser realizado, Luis demonstra, nas duas cartas, que consegue observar e observar-se — ele chega a afirmar “talvez esta carta seja, na verdade, uma carta que estou escrevendo para mim mesmo.” —  de modos distintos a depender de para quem a missiva será enviada. Está nesse ponto, inclusive, uma das grandes primazias do romance: o quão ridículo Luis consegue ser na carta enviada à amante em comparação com a sobriedade da carta enviada para a esposa. Ambas escritas no mesmo mês, observação para a qual voltarei ao final deste texto.
 
Mas o que faz uma carta de amor ser ridícula? Para aqueles que não estão envolvidos no enlace amoroso que motiva a escrita ou o recebimento dessas cartas, o motivo parece óbvio, pois trata-se de uma atmosfera envolta em exageros tamanhos que o único sentimento para quem é apenas espectador é o de vergonha: “A órbita do planeta-de-nossa-história era muito estreita, os dias duravam sessenta minutos, as horas sessenta segundos: desperdiçar uma manhã era como jogar metade da vida no lixo.”
Nos estudos de literatura, associamos o exagero e a pujança de sentimentos com o movimento que ficou conhecido por Barroco. Nas terras brasileiras, é comum que nos lembremos, por exemplo, dos poemas apaixonados de Gregório de Matos como formas de exaltação exagerada do sentimento amoroso. A missiva de Luis pouco, ou nada, distancia-se disso, mas somente para quando a remetente é sua amante Camila.



Chama bastante atenção como o mesmo fato foi abordado por esse jornalista de modo distinto entre a esposa e a amante, porque isso reforça, de modo muito nítido, as necessidades que o homem elabora e as máscaras as quais recorre para atender a essas demandas, como se estivesse sempre em busca do seu estado primeiro nas relações sobre as quais escreve. A fim de justificar sua viagem a um congresso no qual ele pretendia viver mais uma semana de aventuras amorosas com aquela arquiteta e após uma breve resposta dela encerrando o romance, o escrevente procura os arquivos do vencedor do Nobel, Faulkner, e encontra uma caixa com cartas enviadas pelo autor de Palmeiras selvagens para sua amante, Meta Carpenter.  É Paula, a esposa, que tem Faulkner como autor dileto, porém, o potencial de fazer de uma ocasionalidade mote para narrar dias perfeitos parece ser o guia daquele jornalista ao escrever o material arquitetado neste romance.
 
Faulkner, ao produzir sua carta, também ridícula obviamente, inclui uma espécie de história em quadrinhos sobre como aparentemente teria sido um dia dele com Meta. Luis, por seu turno, usa-se dessa carta para pensar sobre como aquela experiência também poderia ser a dele com Camila. Aqui, inclusive, o fazer literário de Jacobo Bergareche consagra a ideia comumente ventilada de que nenhuma experiência é efetivamente exclusiva, até mesmo se pensarmos nos preceitos de Nietzsche para isso. No romance, vê-se que aquele amor vivido pelo vencedor do Nobel também poderia e pode ter e ser vivido por qualquer outro que esteja aberto a experienciar o que Luis chamou de dias perfeitos. As “coincidências” não param por aí, porém. Na carta a ser enviada para a esposa, Luis recorre à mesmíssima imagem da missiva de Faulkner e, fatalmente, copia e cola a mesmíssima descrição que fora enviada, primeiramente, a Camila. Ainda que seja a mesma imagem, sempre a descreveríamos, com destinatárias distintas, de igual maneira? Pouco provável.
 
Após a descrição da “história em quadrinhos”, de Faulkner, temos acesso a duas leituras similares, mas distintas nos detalhes: “É a crônica gráfica de um dia perfeito” (na carta para Camila) e “Acho que esta carta mostra de forma bastante reveladora a verdadeira anatomia do acidente raro que é um dia perfeito (na carta para Paula).
 
Para ambos os casos, Luis chega à conclusão de que se trata de um dia perfeito sendo narrado. A diferença está, porém, no detalhe de que para a amante vê-se uma certeza de se tratar de um dia perfeito e para a esposa uma possibilidade de se tratar de um raro dia perfeito. Esta pequena nuance que diferencia e aproxima as cartas contribui para a percepção de que há uma intencionalidade por parte do escrevente de fazer-se ridículo na primeira carta e sóbrio na segunda, com destaque para o fato de que, naquela, o poeta Fernando Pessoa, responsável pelo heterônimo do autor do célebre verso “todas as cartas de amor são ridículas”, é citado explicitamente. Trata-se, portanto, de nítida intenção em se apresentar como ridiculamente apaixonado; como se aquela fosse a única opção para que a destinatária voltasse a cogitar reviver aquele findo romance.
 
Então, o fato de as duas cartas terem sido escritas em datas muito próximas e o de terem partido de um mesmo ponto apenas reforçam as perguntas iniciais aqui feitas. O leitor precisa ter em mente que este não é um romance que apresentará uma receita ou uma apresentação universal do que são dias perfeitos. Há aqui uma proficuidade de leituras e de sentimentos advindas daquele que escreve e que vive as experiências narradas que são, elas sim, capazes de aventar pensamentos sobre leituras possíveis para dias perfeitos.  A honestidade lida e passível de ser percebida em detalhes simples ou complexos é o que inscreve este romance na importante lista de deve ser lido, ainda que as sinceridades possam ser apenas simulacro do que efetivamente se sente. Mas não seria esse um impulso natural da literatura em si?
 
E para que não deixemos de lado as verves ridículas: Luis é um ridículo apaixonado-escrevente, em um livro ridiculamente apaixonante, capaz de fazer com que os dias de leituras de suas cartas sejam os dias perfeitos.


______
Os dias perfeitos
Jacobo Bergareche
Marina Waquil (Trad.)
Mundaréu, 2023
160p.
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Notas:
1 Em língua espanhola, língua original do romance, este substantivo é escrito sem o uso de acento gráfico. Na versão a que tivemos acesso, o nome desse personagem está assim escrito e, por isso, optamos em mantê-lo de igual maneira nesta resenha.
 
2 Os dias perfeitos também é romance de estreia de Jacobo Bergareche.

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