Então eu li J.D. Salinger
Por Guilherme França
Fazia uma releitura de Dom Quixote quando me deparei com um filme biográfico sobre J.D Salinger, O rebelde no campo de centeio (2018), do diretor Danny Strong. Embora o filme não se configure exatamente como uma obra-prima cinematográfica, ele despertou em mim um profundo interesse pela leitura da obra mais célebre de Salinger, The Catcher in the Rye, publicada como romance em 1951. A partir desse contato com a vida do autor, marcada por seu notório isolamento e pelas sucessivas tentativas de consolidar um texto literário de valor, fiquei curioso para conhecer a razão do sucesso estrondoso e duradouro daquela obra. Mesmo com certa desconfiança e o peso de ter momentaneamente preterido Cervantes, mergulhei por três dias seguidos na narrativa de Salinger para tirar minhas próprias conclusões. O uso da figura de linguagem ao me referir a “ler o autor” justifica-se pelo fato de o contexto biográfico do escritor ter me impulsionado à leitura, e não, inicialmente, a história em si.
A obra nos apresenta a visão de mundo de Holden Caulfield, o narrador-personagem, em primeira pessoa. Caulfield é um jovem de dezesseis anos que está prestes a ser expulso de mais uma escola após reprovar em praticamente todas as disciplinas. Buscando evitar um novo confronto familiar e ter que prestar contas aos familiares, Holden decide adiar seu retorno para casa, viajando de trem para Nova York e se hospedando em um hotel.
O cerne da narrativa se desenvolve a partir de uma série de encontros que o jovem protagoniza antes e depois de deixar a escola: colegas de quarto, ex-namoradas, professores, a mãe de um colega e uma grande quantidade de figuras peculiares da cidade. São poucas as passagens em que Holden está em isolamento absoluto, sendo a maior parte do tempo dedicada à interação com outros personagens. Embora a escrita de Salinger demonstre a inegável habilidade na construção desses diálogos, como disse, o enredo nos apresenta um adolescente problemático, reprovado e vagando por Nova York por alguns dias. Esse cenário já parece conter possibilidades narrativas limitadas, por assim dizer. O livro é um relato de uma peregrinação adolescente pela cidade grande e os “causos” daí advindos, contados a partir da perspectiva do protagonista.
Por esse motivo, acredito que ao abordar a narrativa de O apanhador no campo de centeio, é fundamental ponderar o perfil do personagem/narrador. Se partirmos de uma premissa de fidelidade à realidade psicológica desse personagem, não podemos exigir que um adolescente de dezesseis anos, em plena crise de identidade e rebeldia, ofereça as reflexões mais sofisticadas sobre as questões delicadas ou últimas da existência. Sabemos todos que essa é uma fase da vida em que prevalecem os clichês, o pensamento imaturo e as atitudes despropositadas. Portanto, se o leitor (sobretudo mais experiente) espera um fluxo de consciência sofisticado e denso, algo que se aproxime de obras como Diário de um homem supérfluo (Ivan Turguêniev) ou Memórias do Subsolo (Dostoiévski), deve reduzir drasticamente as expectativas. Holden Caulfield, em sua essência, é retratado em vários momentos como uma figura quase infantil ao longo de toda a obra, e isso parece impactar todo o alcance temático e filosófico do texto. Dito isso, posicionamos a narrativa dentro daquilo que ela pode nos oferecer.
Seguindo na análise, o autor realiza um esforço louvável e até interessante para construir um personagem que soe, de fato, como um adolescente. Isso é percebido, sobretudo, pelo emprego recorrente de gírias e expressões coloquiais. Na tradução do professor Caetano Galindo, que utilizei na leitura, termos como “coisa e tal”, “juro mesmo”, “fiquei puto” e “pacas” são surgem a todo momento, forçando um vocabulário que “jovem” e corriqueiro. Contudo, também percebi que essa estratégia pode gerar um certo cansaço no leitor. A sensação de estar lendo ou conversando com um adolescente que manifesta pouco caso e desprezo por tudo que o cerca se torna um pouco entediante. E esse sentimento não se restringe somente à forma, mas se estende, sobretudo, ao conteúdo das histórias e dos pensamentos de Caulfield.
O aspecto mais marcante do percurso de Holden é o seu desconforto crônico e recorrente com as pessoas. Em suas interações com personalidades distintas, ele sempre demonstra um profundo desprezo por quase todos, reservando respeito a poucas figuras que conhece. Em sua visão de mundo, a maioria das pessoas é classificada como falsa, mentirosa, arrogante, superficial ou burra. Para tomarmos alguns exemplos, temos Stradlater, seu colega de quarto bonito e arrogante, mas que Holden considera um falso; Robert Ackley, um garoto meio desleixado e irritante, mas que acaba sendo uma figura de proximidade. Mais à frente, Holden mente para a mãe de um colega de escola que encontra no trem, inventando várias histórias sobre o filho dela. Naquele diálogo ele revela a sua compulsão em mentir. Já no hotel que se hospedou, vai ao bar e conhece três mulheres, com quem tenta flertar e conversar, mas acaba achando que são excessivamente superficiais. E assim vamos sendo levados a outros encontros, inclusive com uma prostituta, com quem Holden não mantém relações sexuais, pois ele tenta conversar, mas a moça está pouco disposta para o bate-papo e vai embora. Como o adolescente não pagou o valor combinado, começa uma briga generalizada entre ele, a prostituta e um funcionário do hotel.
O jovem então continua a vagar pela cidade, buscando conexões humanas significativas, mas só encontra “falsidade”. Ele pensa muito em sua irmã, Phoebe. Toma café com duas freiras e gosta muito delas e da pureza que elas representam; faz uma visita ao museu e lembra da infância e, por fim, tem um encontro desastroso com Sally Hayes, uma garota que ele acha atraente, mas que também considera “falsa”. Ele propõe que os dois fujam para morar juntos em uma cabana, mas a garota não leva a proposta a sério, afiram que ambos “são quase crianças” e a conversa termina em uma outra briga. A essa altura notamos que os breves momentos de mínima afeição ficaram reservados a figuras que simbolizam a inocência, como as freiras que havia encontrado no café e sua irmã mais nova, Phoebe.
Quase no fim da história, Holden finalmente decide se arriscar e ir para casa ver Phoebe. Ela o repreende por ter sido expulso da escola mais uma vez e o desafia a citar algo de que ele realmente goste. Eles conversam sobre Allie, um irmão falecido e sobre quem Holden fala algumas vezes no decorrer da história. Phoebe então pergunta o que ele quer fazer da vida, e ele explica a sua fantasia de ser o Apanhador no campo de centeio. A frase, que dá título ao livro, surge quando Holden ouve um garotinho na rua cantando uma canção e, naquele momento, ele cita a letra para Phoebe. Holden acreditava que a letra da canção seria: “Se alguém apanha alguém que vem pelo campo de centeio”. A irmã então o corrige, dizendo que a letra correta é “Se alguém encontra alguém que vem pelo campo de centeio”. Mesmo assim, a percepção de Holden é que o propósito da sua vida é ser o “apanhador” no campo de centeio:
“Eu fico imaginando um monte de criancinhas brincando num grande campo de centeio e tal...E estou na borda de um penhasco maluco. O que eu tenho que fazer e pegar todo mundo se eles forem cair do penhasco — quer dizer, se eles estiverem correndo e não olharem para onde vão eu tenho que aparecer de algum lugar e apanhar eles. Era a única coisa que eu ia fazer o dia todo. Eu ia ser o apanhador no campo de centeio e tal. Eu sei que é doido, mas é a única coisa que eu queria ser de verdade. Eu sei que é doido.”
A partir de tudo o que lemos sobre os pensamentos de Holden ao longo da história, seu descontentamento com a realidade e com as pessoas, sobretudo com os adultos e com a mentira que ronda suas vidas, com os falsos e “putos”, como diz, via de regra se interpreta que esse campo onde as crianças brincam livremente simbolizaria a infância, a pureza e a espontaneidade que Holden tanto valoriza, enquanto o penhasco seria o perigo de crescer e, assim, perder a inocência e a inevitável queda que sofremos no mundo adulto, que Holden vê como hipócrita, superficial e corrupto. Por isso o seu desejo é de se tornar o apanhador no campo de centeio, tomando para si o papel de um guardião que impede as crianças de caírem neste precipício. É o seu desejo de preservar a inocência e a espontaneidade a todo custo, algo que durante todo o seu percurso não conseguiu fazer, manifestando um desejo de parar o tempo antes dessa tragédia.
Assim, embora o livro seja aparentemente uma sucessão de encontros protagonizados por um jovem em crise, onde as reflexões sobre a natureza humana tendem a ser superficiais ou, como antecipei, limitadas à sua percepção do mundo na adolescência, é inegável o sucesso canônico de O apanhador no campo de centeio. Minha experiência pessoal de leitura, no entanto, contrasta com algumas análises acadêmicas que frequentemente associam esse triunfo da obra ao seu papel como espelho da alienação juvenil no contexto pós-guerra ou algo similar. Caulfield traz alguns pensamentos sobre a natureza humana, a forma de ser de algumas pessoas, seus trejeitos, faz análises de seus comportamentos, mas isso fica longe de fornecer ao leitor qualquer reflexão muito significativa.
Um exemplo disso é que como um leitor que tem o hábito de grifar frases, pensamentos, diálogos ou reflexões de personagens que me impactam, não grifei mais de uma ou duas passagens em todo o livro. Mesmo que a obra possa ter traços positivos em sua composição, e que de fato possa existir um paralelo entre os cenários vividos por Caulfield e os horrores da guerra e toda a série de frustrações humanas daí advindas, mesmo que o leitor escave com as próprias mãos as camadas mais profundas do texto, não encontrará, a meu ver, um pote de ouro contendo reflexões ou abstrações verdadeiramente impactantes sobre o mundo, a sociedade, a vida, a morte, o homem ou o que for. Então eu li J.D. Salinger. E conhecer parte de sua biografia, de seu perfeccionismo com a escrita, sua paixão pela literatura, o impacto da guerra em sua personalidade e o desejo de refletir no texto uma prosa valiosa, talvez tenha valido mais a pena do que conhecer aquela que é reconhecida como a sua maior obra.
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O apanhador no campo de centeio
J. D. Salinger
Caetano W. Galindo (Trad.)
Todavia, 2019
Todavia, 2019
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