O subsolo no espírito natalino em Dostoiévski

Por Juliano Pedro Siqueira


Bartolomé Esteban Murillo. Jovem mendigo



Dostoiévski não só se revelou ao mundo como um grande romancista, mas também um exímio contista. O autor de Crime e castigo desenvolveu contos memoráveis, entre eles — talvez o menos conhecido do público e o que tomo como ponto de reflexão neste texto —, “A árvore de Natal na casa de Cristo”.

O leitor não se deixe enganar com o breve conto. A narrativa nos apresenta de maneira incisiva, de forma dramática e crítica, o cenário desolador que cinge o protagonista principal, um garoto, que mesmo padecendo de fome, contempla impotente a moribunda mãe que padece enferma num esfarrapado colchão. 

É nesse contexto sombrio que Dostoiévski imprime no seu conto o conceito de subsolo, para revelar as contradições de uma religiosidade desprovida de compaixão. Não apenas: mesmo diante da gritante desigualdade social, a criança faminta, na iminência da orfandade, consegue captar o verdadeiro espírito natalino ao deslumbrar a beleza dos símbolos ornamentais, representando a luz de Cristo que ilumina o mundo e dissipa as trevas dos corações dos homens. O subsolo dostoievskiano é atribuído ao homem cuja razão suplanta-o da sensibilidade humana, cultivando em si valores autodestrutivos, como o egoísmo e a soberba.

Apesar de o garoto viver num porão úmido junto à enferma mãe, ele rompe com a inércia provocada pela mísera condição e é impelido a contemplar do lado de fora os luminosos pinheiros ornados, como se tal experiência pudesse lhe abrir uma janela de esperança. Magistralmente, o conto de Dostoiévski toma esse momento de encantamento e transcendência, quando o garoto é arrebatado, para deflagrar, como observamos, a contundente crítica à hipocrisia religiosa daqueles que celebravam a festa principal dos cristãos.

A Rússia sempre foi notável por sua força religiosa; em destaque, o cristianismo, tão marcante na tradição literária. O próprio autor do conto, devoto dessa tradição, a tematiza nas diversas obras sob sua alcunha, evocando-a em seus complexos personagens; comumente em figuras emblemáticas como Aliocha de Os irmãos Karamázov, o príncipe Míchkin de O idiota e, por que não, Sônia, protagonista da redenção de Raskólnikov em Crime e castigo

Assim, o autor russo constrói “A árvore de Natal na casa de Cristo” situando a fé cristã na festividade natalina, porém desnudando sua farsa. A dissonância entre fé e obras entra em ação, pois a ausência de uma tende anular a outra. Essa contradição reforça, sim, o que podemos vislumbrar como a denúncia de uma espiritualidade sem vida e sem amor.

O garoto vive em um curto intervalo sua decepção em meio ao deslumbramento. No mesmo instante em que seus olhos faiscavam diante daquele cenário suntuoso, nos bastidores não encontra o acolhimento e a compaixão esperados, condizentes com o discurso do espírito natalino. Ao contrário, depara-se com o desprezo, a hostilidade e a exclusão por pessoas que priorizam a beleza externa, negando, desse modo, a essência da cristandade.  

Diante da escandalosa hipocrisia e temeroso pela ríspida recepção da gente que vive seu exclusivo Natal, o menino logo foge desesperado à procura de um novo refúgio. Exausto, contrito e aplacado por uma fome que já devora suas gélidas fibras musculares, é flagrado encolhido, procurando em vão se aquecer. Tremendo até as bases esqueléticas, vemos o personagem apanhado por imagens idílicas.

Acreditando ser a própria mãe que o chamava e cada vez mais envolto por bonecos cintilantes e uma imponente árvore que se agigantava e resplandecia diante da sua pequenez, o pequeno parece mergulhado em sonho. Empolgado e afagado por um calor que dissipa o frio que o domina, pode se deleitar com uma espécie de paraíso natalino onde bonecos dançam e falam a sua língua.

Numa harmoniosa dança e na presença de tantas outras crianças, a criança é apresentada à casa de Cristo na figura natalina. São os que não puderam, assim como ele, ter uma árvore natalina na vida terrena. Jubiloso, o garoto chama novamente pela mãe para compartilhar e gozar daquele momento mágico e ela já não pode mais ouvi-lo.

A morte o reuniu à casa de Cristo e sua pujança garantiu-lhe uma exuberante experiência, sendo introduzido ao verdadeiro espírito natalino. Não mais era necessário a anuência da pseudorreligiosidade e tão pouco pertencer a nenhuma elite terrena. 

Sem temer a crítica humanista de seu tempo, Dostoiévski nunca omitiu o caráter místico e redentor de seus textos. Era a forma honesta encontrada por ele para lidar com a aporia do mal e os problemas morais que dela decorriam. A soluções moral para um mundo que nega Deus em razão do niilismo exacerbado encontra-se justamente na ideia de metanoia, sugerindo uma nova consciência que faria convergir o homem nos caminhos do Criador.

Em “A árvore de Natal na casa de Cristo”, Dostoiévski une elementos como o subsolo e a espiritualidade genuína, encarnada na pureza e ingenuidade do garoto. Enquanto os homens religiosos — representando o gênero  humano — acreditavam viver a essência da fé cristã, pois estavam presos a rituais vazios, como os fariseus na época de Jesus, o garoto, na sua simplória vida, compreende o espírito vivo do Natal  quando se rende à beleza da vida, mantendo seu encantamento por ela até mesmo após a morte.


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