Uma vanguarda caseira feita por um homem só

Por Emmett Stinson

Gerald Murnane. Foto: Morganna Magee


 
Frequentemente me perguntam por qual romance de Gerald Murnane os leitores devem começar, mas não há uma porta de entrada acessível (minha sugestão, no entanto, é sempre o conto “When the Mice Failed to Arrive”, que contém, em miniatura, os principais temas e técnicas que ele desenvolve ao longo de sua obra). As reações à obra de Murnane costumam ser extremas: muitos leitores, entre os quais me incluo, ficam obcecados, querendo ler tudo o que ele escreveu, enquanto outros o detestam, ficam confusos ou coisa pior.

Os quatro últimos romances do escritor — Barley Patch, A History of Books, A Million Windows e Border Districts — são obras exemplares do estilo tardio. Essa expressão foi cunhada por Theodor Adorno, que observa que o estilo tardio ocorre quando a “subjetividade” de um artista se “proclama ferozmente” a tal ponto que “rompa a forma arredondada em prol da expressão”. Nesse sentido, o artista rejeita as perfeições formais de seu meio para explorar, em vez disso, circunstâncias artísticas idiossincráticas.

O único problema com essa afirmação é que praticamente todos os romances de Gerald Murnane carregam esses elementos que caracterizam a fase tardia: todas as obras a partir de As planícies¹ demonstram tendências claras ao retraimento, ao maneirismo e à autorreferenciação.

Esse estilo pode, em parte, explicar por que sua obra levou décadas para encontrar o público merecido. Ele sempre esteve destinado a ser um autor cult, porque sua escrita, desde The Plains, é tão autorreferencial quanto rebuscada.

Admito que, apesar de ter lido e gostado deste livro quando cheguei à Austrália há quase duas décadas, só comecei a apreciar plenamente a obra desse escritor depois de ler cinco de seus livros. Isso pode soar um pouco como síndrome de Estocolmo literária, mas algo nessas primeiras experiências me mobilizou a me manter lendo-o. O leitor assíduo de Murnane descobrirá que seu prazer só aumenta à medida que é possível reconhecer as referências, as revisões de cenas anteriores e a revelação tardia de conexões ocultas entre obras anteriores e posteriores.

O reconhecimento internacional de Murnane foi igualmente tardio, mas mesmo a recepção de sua obra em seu país permanece dividida. Ao longo dos vários anos em que escrevi este livro², ouvi regularmente outros acadêmicos e críticos fazerem piadas sobre os livros dele serem entediantes ou de pouco interesse: “Gerald Mundane”, disse um deles, rindo. Como alguém que lê principalmente ficção que poderia ser descrita como “experimental”, estou habituado e insensível a esses sentimentos, mas tenho dificuldade em imaginar qualquer outro escritor australiano provocando comentários semelhantes. No entanto, parece notável que até mesmo muitos dos leitores mais assíduos de Murnane registrem o tédio como uma parte crucial de sua estética. Ben Lerner, por exemplo, argumenta que “as frases de Murnane são pequenas dialéticas de tédio e beleza, superficialidade e profundidade”, e o prazer de lê-las deriva precisamente dessa oscilação entre o tédio e o esplendor visionário. Há uma languidez em sua escrita que torna seus livros agradáveis e únicos — mas apreciar isso exige que os leitores estejam abertos a experiências literárias incomuns.

Nicholas Birns argumentou que Murnane é, ao mesmo tempo, “o mais australiano dos escritores” e “o menos australiano dos escritores”. Embora o conteúdo de Murnane seja australiano, sua estética compreende uma variante localizada e autodidata da vanguarda internacional, portanto, não é surpreendente que a recepção tardia de sua obra tenha sido predominantemente fora de seu país. As rivalidades locais provavelmente foram exacerbadas pelo crescente interesse de leitores e instituições internacionais pela sua escrita.

A sensação de inadequação da Austrália em relação à legitimidade de sua cultura — um fenômeno sociopsicológico que A. A. Phillips denominou “vergonha alheia cultural” — também se manifesta na “vergonha alheia invertida”, ou seja, um patriotismo cultural compensatório excessivo que pode gerar ressentimento em relação à mediação internacional da literatura australiana. Cada vez mais, porém, a recepção australiana da obra de Murnane é, senão totalmente irrelevante, certamente menos significativa: ele se tornou um autor internacional e sua reputação será consolidada global e não nacionalmente.

A escrita de Murnane se inscreve em um gênero ambíguo que não pode ser facilmente descrito como ficção ou não-ficção. Embora sua obra empregue técnicas frequentemente associadas aos romances modernistas da Europa e da América Latina, o conteúdo se baseia em suas próprias experiências, que não são convencionais e, de certa forma, dissonantes com o modo de vida da maioria das pessoas hoje em dia. Seu estilo de vida incomum e suas perspectivas singulares sobre a vida contemporânea são parte do que despertou tanto interesse da crítica internacional.

Em seu ensaio “The Breating Author”, Murnane argumenta que o que alguém “nunca fez” é tão revelador quanto “o que ele fez ou quer fazer”. Murnane nunca viajou de avião nem saiu da Austrália, sempre teve o mesmo sentido olfativo, não possui televisão, raramente assiste a filmes, não frequenta galerias ou museus, não usa óculos de sol, não sabe nadar nem mesmo com qualquer artefato feito para tal, não sabe usar uma câmera e nunca operou um computador. Embora tenha se tornado um usuário intermitente de telefones celulares mais recentemente (ele os liga apenas em períodos específicos do dia e se comunica por meio de longas mensagens de texto), e porque não usa computador, não navega na internet; são os amigos que seus imprimem resenhas e ensaios online a respeito da sua obra e lê quase todos. O que é único em Murnane é a maneira como ele conseguiu criar suas obras de ficção a partir de suas experiências intencionalmente limitadas.

Em vez de se limitar aos horizontes estreitos da própria experiência de Murnane, sua obra utiliza essas limitações como meio de criar um modo de ficção singular e incomum: uma forma caseira de uma tradição internacional de vanguarda.

O projeto artístico de Murnane busca representar, em grande detalhe, sua perspectiva particular sobre o mundo. Parte da sua conquista reside na capacidade de mitificar fascínios aparentemente banais — fetiches, na verdade — que reaparecem em suas obras: bolinhas de gude, corridas de cavalos, vitrais, a amada garota no trem com quem nunca fala, o medo do mar e o amor por paisagens rurais predominantemente planas com árvores ao longe, entre muitas outras. Essas fixações aparecem repetidamente de maneiras oblíquas e lhes conferem um novo significado a cada repetição.

O artista que ele mais me lembra é Joseph Cornell, de Nova York, famoso por criar suas detalhadas montagens em caixas a partir de materiais encontrados em brechós e lojas de artigos usados. As montagens de Cornell, assim como os escritos de Murnane, são simultaneamente artesanais e profundamente pessoais — e, de alguma forma, criações totalmente autossuficientes e autônomas que fazem o espectador sentir como se estivesse espiando um mundo novo e desconhecido. A ficção de Murnane produz um efeito semelhante: a especificidade da perspectiva de seu narrador e os detalhes, muitas vezes avassaladores, da experiência estreitam a janela de sua visão, mas sua profundidade horizontal parece infinita. Apesar de toda estranheza, a sua obra ainda se baseia em noções literárias reconhecíveis e tradicionais do belo e do sublime — e ele sugere repetidamente que ler e escrever são formas privilegiadas de acessar esses momentos transcendentais.

A obra de Murnane permanece envolta em uma série de críticas fortes e persistentes. O escritor pode provocar tais reações porque — como uma vanguarda caseira feita por uma só pessoa — seu trabalho é tão singular. Sua formação acadêmica consistiu em uma qualificação para o magistério e, posteriormente, um bacharelado cursado à noite como aluno fora de faixa. Ele praticamente não teve contato com instituições literárias no início de sua vida, e havia pouca cultura literária local para apoiar seus hábitos incomuns de leitura. Ele comenta como precisava ler publicações internacionais, como o Times Literary Supplement, para descobrir novas obras de ficção e, muitas vezes, tinha que encomendá-las, inclusive do exterior. Mas, apesar desses desafios, ou talvez por causa deles, produziu uma série de obras que borram as distinções de gênero entre ficção e não-ficção, e que dialogam e se respondem de maneiras complexas. Seus livros são belamente escritos, teoricamente complexos e emocionalmente carregados de uma forma que recompensa a releitura. Seu estilo pode parecer parado ou às vezes formal, mas isso esconde a ampla gama de efeitos estéticos que consegue produzir.

Ele é, sem dúvida, o autor australiano mais original e mais importante dos últimos 50 anos, e um dos melhores escritores que a Austrália já produziu. Essa afirmação será contestada veementemente por muitos — e talvez pela maioria — dos críticos e leitores australianos, mas suspeito que se tornará um sentimento comum internacionalmente.


Notas da tradução
1 As planícies foi também o primeiro livro de Gerald Murnane publicado no Brasil e resenhado aqui.

2 O autor se refere a Murnane publicado pela The Miegunyah Press (2023). O texto aqui apresentado foi extraído deste livro. 


* Este texto é a tradução livre de “A homemade avant garde of one: why is Gerald Murnane revered abroad but divisive in Australia?”, publicado aqui, em The Guardian.
 

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