O cinema de Samuel Beckett



O e E são duas personagens de Film, o filme que Samuel Beckett rodou num velho edifício de Nova York no verão de 1964 a convite do avant-gard Barney Rosset; a princípio esta produção é a primeira de outras duas peças – uma encomendada a Harold Pinter e outra a Eugène Ionesco. 

Foi a primeira e única vez que o dramaturgo irlandês viajou à Big Apple. Permaneceu aí só por três semanas, o período de duração das filmagens, sempre com um breve roteiro debaixo do braço e um único ator para interpretá-lo. Film estreou em 4 de setembro do ano seguinte na terceira e última noite do Festival de Veneza. 

Buster Keaton, então um ator em decadência, vítima da ruína e dos estragos do álcool, foi o único que rodou com Beckett; aceitou sem muito entusiasmo o projeto. Segundo Beckett, provavelmente Keaton nem sequer se deu ao trabalho em ler a história de O, uma personagem em constante ruína e E, o olho que o persegue. “Buster não o entendia. Quem entendia? Nem eu entendia” – diria anos depois o autor de Esperando Godot.

Film foi realizado. Uma película de 22 minutos praticamente muda – sua única linha de diálogo é um “sssh!” que manda calar. Mas não se resume a isso o trabalho cinematográfico do escritor irlandês. Há sete peças produzidas para televisão que levaram muito tempo para que os pesquisadores pudessem colocar as mãos nelas uma vez que estavam espalhadas entre Alemanha, Irlanda e Nova York. Assim se completa todo o trabalho fílmico de Beckett – exercício que mais interessa aos estudiosos pela maneira como ele construiu um trabalho que é intraduzível em palavras. Isto é, é pura imagem.

Beckett interessou-se pela sétima arte desde cedo. Inclusive chegou a escrever a Pudovkin e Eisenstein para viajar à Rússia e estudar com eles. Mas, provavelmente pela forte influência de James Joyce, que se atravessou em seu caminho pela época, se apaixonou pela literatura de uma vez por todas.

Numa entrevista com o jornalista britânico Kevin Browlow, Beckett descreveu sua relação com Buster Keaton, quem seis anos antes de rodar Film havia recusado interpretar Esperando Godot num teatro de Greenwih Village por tê-la como uma obra ininteligível. Beckett descreveu Keaton como uma pessoa hermética e esquiva. “Tinha cara de pôquer e também mente de pôquer. Duvido que nunca lido o roteiro do filme e nunca saberei se gostou ou não. Mas queria fazê-lo, e foi muito competente. Sempre ia acompanhado de uma jovem moça, sua mulher, a que ao que parece havia-lhe feito afastar-se do alcoolismo. Era muito difícil manter uma conversa com ele. Sempre estava ausente”.

Na mesma entrevista – que foi concedida com a única condição de que não fosse gravada por nenhuma câmera – Beckett assegura que nunca perguntou a Keaton se sabia ou lhe interessava do que tratava Film. “Para ele nada lhe interessava. Passava o tempo jogando baralho em seu camarim. Só o senti vivo numa tarde, quando ele se pôs a falar de como era o sistema de filmes. Foi muito divertido, contou que rodavam sabendo só o princípio e o fim e que o resto o improvisavam sobre a realização”. E continua – “Buster falava com monossílabos. Provavelmente pensava que estávamos loucos. O certo é que nós éramos uns aficcionados e ele era o único profissional”.

Talvez o excessivo laconismo de Keaton tenha ofendido a Beckett, mas curiosamente sua aventura cinematográfica estava marcada pelo silêncio; Film, não esqueçamos, é marcado apenas por uma expressão imperativa e até aonde se sabe Beckett teve dúvidas de incluí-la. Para ele, o cinema deveria livrar-se das cadeias da narrativa, expressar conceitos abstratos e, em última instância, converter-se em pensamento.

A obsessão pela câmera como um instrumento de perseguição se repete no filme e em quase todas as peças televisivas do escritor. O roteiro de Film, começa com uma frase do filósofo irlandês George Berkeley: “Ser é ser percebido”. A ideia do filme era demonstrar, em último termo, o ruir de si mesmo.

Em He, Joe (1966), um homem só num quarto é sitiado por uma câmera e pela voz de uma mulher que lhe repreende sobre o suicídio de outra mulher. Em ... nur noch Gewölk... (1977), um poema de Yeats é a referência de uma obra sobre a perda do amado, o progressivo desvanecimento da memória e a impossibilidade de recuperação. Os roteiros de Beckett não dão a medida das soluções visuais que explora; é curioso seu desprezo pela palavra, sua consciência da linguagem cinematográfica.

Beckett jamais permitiu que rodassem suas obras de teatro. Recusou uma oferta milionária para que Peter O’Toole levasse ao cinema Esperando Godot. Ele mesmo sempre se negou a se mostrar frente uma câmera de televisão ou para a grande tela e só existe uma gravação de apenas alguns segundos em que se vê um movimento de seu magérrimo espectro.


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