Literatura e viagem: dez livros fundamentais da língua portuguesa


Ninguém hesitará em definir a viagem como um dos temas (e formas) mais profícuas da literatura. Além do clichê de que ler é uma forma de viajar, escritores tramaram suas experiências em relatos, crônicas, que é uma verdadeira visita a lugares onde o leitor possivelmente só poderá ir pela leitura. Outros, transformaram o itinerário numa maneira de estruturação da obra. Esta última possibilidade talvez seja a mais antiga das formas, afinal, o grande clássico fundador da literatura ocidental é o que, se não o périplo de um herói retornado da guerra em Tróia?

Na literatura de língua portuguesa, a viagem adquire uma série de sentidos e representações; este foi um dos motes que condicionou a criação dessa listinha. Sim, uma literatura que tem como um dos textos fundadores esse tema (que se constitui igualmente em forma de estruturação da obra) não poderia ser alheia à sua universalização. Possivelmente, na literatura vinda de Portugal esteja o melhor dos exemplos para o tratamento do tema, afinal, este não foi um dos primeiros povos a enfrentar o desconhecido em viagens mar afora? E no Brasil, que o texto fundador da nossa literatura, é nada mais que um relato de viagem?

A lista mescla alguns textos clássicos e outros contemporâneos. E, como costumamos lembrar sobre toda lista que publicamos neste blog, não é definitiva, não é um ranking e as informações sobre as obras são copiadas das sinopses oferecidas pelas editoras que as publicam.



1. Os lusíadas, de Camões: encontrado facilmente na web a obra poderia sequer ter existido. Conta-se que parte dela foi composta pelo bardo português numa de suas viagens e no retorno a Lisboa escapou de um naufrágio. Se a anedota é verdade ou não, o fato é que esta é uma obra sobre viagem, escrita em viagem e que este mesmo tema adquire, como nunca antes na literatura de língua portuguesa, uma forma única: escrito em versos, o livro é o relato sobre a travessia e o périplo dos navegantes lusitanos até a chegada a Índia. Além de narrar o caminho para a descoberta das índias, a epopeia fala sobre as grandes navegações, o império português no Oriente, os reis e heróis de Portugal, dentre outros fatos que o tornam um poema histórico. Em paralelo, como uma boa epopeia, desenvolve-se também uma história mitológica, envolvendo lutas entre os deuses do Olimpo: Vênus e Marte, Baco e Netuno.

2. Viagens na minha terra, de Almeida Garrett: numa narrativa leve e quase inauguradora do gênero na literatura em Portugal, o livro mescla duas histórias: a narrativa em torno de uma viagem realizada mesmo pelo escritor entre Lisboa e Santarém e a narrativa em torno do amor entre Carlos, filho do Frei Dinis, que acaba por trair Joaninha, que morre louca. O texto de Garrett é de 1846 e por isso um dos primeiros a tratar abertamente outra relação conturbada na literatura (pelo menos para os estudos literários), a de realidade e ficção; a obra se constitui por uma mistura de estilos, gêneros e formas de linguagem, ora o relato assume um tom jornalístico ora popular ora clássico.

3. Explicação dos pássaros, de António Lobo Antunes: um dos escritores mais importantes da literatura portuguesa terá utilizado o tema da viagem de forma diversa em seus romances. Desde a viagem pelo interior da guerra e um mundo em degradação como faz na trilogia que o tornou reconhecido dentro e fora do seu país – Memória de elefante, Os cus de Judas e Conhecimento do inferno – aquela em que busca descontruir essa glória acumulada pela poeira da história em clássicos como Os lusíadas, como faz em As naus. Neste romance de 1981, Explicação dos pássaros, seu quarto título, António Lobo Antunes insere a viagem não apenas como tema, mas elemento estruturador da obra. Rui S. é um professor universitário em crise. Abandonado pela primeira mulher, com quem teve dois filhos, casou-se novamente apenas para evitar a solidão. Por conta dos rumos que escolheu para a própria vida, é desprezado pelo pai e pela família. Após visitar a mãe agonizante num hospital de Lisboa, parte de carro com Marília, sua segunda mulher, numa viagem de quatro dias em que pretende lhe pedir a separação. Uma jornada sem volta de um homem assombrado por antigas recordações e incapaz de mudar os caminhos que escolheu.



4. A jangada de pedra, de José Saramago: na obra do escritor o tema da viagem é uma constante e está em praticamente 90% dos seus romances. A crítica sempre costumou dizer que as personagens saramaguianas são trânsitos no mundo. De fato, uma obra-síntese dessa constatação é esta publicada no final da década de 1980, muito embora pudéssemos acrescentar aqui também o romance A viagem do elefante, título que apresenta a saga de Salomão, um elefante nascido em Goa, transporta pelos mares a Portugal para servir de presente para a coroa portuguesa ao arquiduque austríaco Maximiliano II. Em A jangada de pedra é a própria Península Ibérica que, no ato insólito da geografia, rompe-se do continente e começa a vagar sem destino pelo Oceano Atlântico. Enquanto todas as autoridades buscam compreender o fenômeno, quatro figuras marcadas por acontecimentos também insólitos se encontram e farão um grande percurso de uma ponta a outra da grande jangada.

5. Macunaíma, de Mário de Andrade: o escritor brasileiro, um dos nomes mais importantes do Modernismo, construiu uma epopeia genuinamente nacional que é, a um só tempo, o trânsito pela geografia e pela diversidade cultural do Brasil. Macunaíma nasce às margens do Rio Uraricoera na Floresta Amazônica e depois de perder o muiraquitã, um seu talismã, inicia seu périplo pelo país: Belém, Rio Grande do Norte, Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo. Se o leitor, por um lado, ficar assombrado com a complexa linguagem do escritor, por outro, não poderá esquecer que esta foi a maneira mais acertada da literatura conseguir congregar essa mistura de formas que é a cultura e o povo brasileiro, tentativa já esboçada desde os românticos como José de Alencar e Gonçalves Dias.

6. Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade: habitante da São Paulo da segunda metade dos 1920, a personagem que dá nome a este “não-livro” (cf. classificou Haroldo de Campos) é um funcionário público nada exemplar: trabalha num órgão federal para saneamento e descobre, num ambiente propício à toda sorte de transgressões, uma fortuna deixada pelos revolucionários para um dos seus filhos. Aí está a saída para uma vidinha medíocre cujo dia-a-dia se restringe a fantasias sexuais e fazer filhos. São 11 fragmentos de gêneros diversos que dão conta de iguais momentos da vida de Serafim; o que alinhava essa dispersão narrativa é o episódio da viagem: com o dinheiro roubado de Pombinho, o protagonista da obra embarca para a Europa. A bordo do steam ship Rompe Nuve irá iniciar uma nova, numa viagem por diversos oceanos, livre das imposições de uma sociedade burguesa e patriarcal.



7. Vidas secas, de Graciliano Ramos: toda uma parte da literatura brasileira se dedicou a tratar das consequências do fenômeno das secas no sertão nordestino, seja a miséria do povo do interior, seja o proveito dos ricos e da política em lucrar com a miséria alheia. E uma síntese desse tema social pode ser lida no romance de Graciliano Ramos que congrega no trânsito de uma família de retirantes do sertão para o centro-sul do país enquanto, nesse trajeto, se desenha toda a sorte de questões que perpassam essa condição social: a desonestidade dos ricos que se mantém à custa dos sacrifícios dos necessitados, a arbitrariedade dos aparelhos dominantes e a impossibilidade de sobreviver numa condição em que o homem escraviza o homem.

8. O último voo do flamingo, de Mia Couto: a obra do escritor moçambicano tem grandiosidade nela mesma e dispensa apresentações. Neste título, já lido pelo cinema, a narrativa é sobre a viagem de um delegado da Organização das Nações Unidas,  o italiano Massimo Risi, a uma vila de Moçambique denominada Tizangara; sua ida ao lugar tem como função apurar uma série de mortes insólitas de soldados da força de paz. Narrada por uma voz que se nomeia como o tradutor de Tizangrara, a viagem do estrangeiro europeu é uma construção sobre um espaço em ruínas e contradições ininteligíveis aos olhos do viajante, um impossibilitado de apreender o “peso da África”.

9. Assim na terra, de Luiz Sérgio Metz: é uma das obras literárias mais importantes do país nas últimas décadas. Inspirada num verso de T. S. Eliot — "no meu começo está meu fim e no meu fim meu começo" —, a narrativa acompanha a jornada do protagonista pelo pampa gaúcho em sua viagem de autoconhecimento. No percurso, conhece Gomercindo, que, mais velho, leva-o a um galpão surreal — o Pensário —, espécie de caverna platônica de arquitetura rigorosa, com janelas e portas implantadas numa simetria que remonta a uma quase-perfeição filosófica. Aí, os dois convivem entre sombras, embriagados por diálogos, lembranças e anotações, em torno de uma escrivaninha de gavetas vazias, à luz de uma vela e de um lugar permanente.

10. Em breve tudo será mistério e cinza, de Alberto A. Reis: o primeiro romance do escritor brasileiro faz um retorno a tempos quase imemoriais de nossa história. No outono de 1825, o jovem joalheiro François Dummont e sua mulher Honorée abandonam o conforto da vida em Paris para embarcar numa viagem incerta rumo à Demarcação Diamantina, em Minas Gerais. Com o intuito de escapar das sombrias ameaças que pairam sobre sua família e alcançar uma prosperidade impossível em seu país de origem, o francês planeja enriquecer com a mineração de diamantes. Na jornada até o sertão mineiro, os imigrantes se deparam com uma bizarra sequência de presságios e encontros singulares; avisados pelas autoridades locais que não conseguirão autorização para a extração de mineiros, os Dumont partem em busca do ouro mineiro, sem imaginar que cairão num mundo selvagem habitado pelas leis soltas da corrupção, do tratamento subumano dos brancos com os negros e índios, entre outros temas caros ao período conturbado de formação de nosso país.

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