Pedro Lemebel




Na madrugada de sexta-feira (23) em Santiago do Chile morreu o escritor Pedro Lemebel aos 62 anos; trazia consigo um câncer de laringe contra o qual lutava desde 2011. Apesar disso, a notícia foi recebida com certa surpresa pelos mais íntimos e pelos leitores e admiradores de sua obra. Sim, a morte dos que dedicam sua vida à construção de outras possibilidades de habitar o mundo será sempre uma surpresa. E triste surpresa. Ainda mais quando leva de nós alguém que poderia estar ainda apenas no princípio de uma travessia.

O estado de saúde de Pedro já o impossibilitara de ir à Feira do Livro de Santiago, em outubro; e o fim de ano foi num hospital entre a recuperação de cirurgias e tratamentos medicamentosos. Parecia, entretanto, que o escritor estivesse nas mãos com a capacidade de decidir quando partiria – essas foram, mais ou menos, as palavras usadas pelo amigo e porta-voz da notícia que correu o mundo em língua espanhola, Héctor Núñez González.

Lemebel informara sobre sua enfermidade numa sala repleta de seus seguidores. Escritor bastante querido, direto e de relação franca com todos, convertido já num ícone popular, não foi nunca de esconder determinadas questões pessoais daqueles que o amavam. “Como é a vida... Arrancou-me da AIDS e me agarra ao câncer” – disse naquela ocasião.

Criativo, contestador, lúcido, Lemebel foi o que se pode dizer um artista integral: produziu novas correntes na história cultura do Chile, ainda que, inexplicavelmente, nunca tenha chegado a receber o Prêmio Nacional de Literatura. Muito por sua posição sempre apresentada como a de sujeito marginal. Marginalidade que foi o motor propulsor de seu trabalho e da elaboração de uma linguagem muito própria; marginalidade que o converteu num dos autores chilenos de maior projeção internacional. Citado e admirado por muitos outros nomes daquele país; Roberto Bolaño, por exemplo, reiterou diversas vezes a necessidade de conhecer a obra de Pedro Lemebel. Foi o escritor de Os detetives selvagens quem levou a obra do amigo para a Europa e fez publicá-la no final da década de 1990.

Filho de padeiro e nascido numa região extremamente pobre de Santiago, Lemebel apaixonou-se pela arte nas ruas. Depois de passar por cursos técnicos e conseguir findar o curso de Artes Plásticas tornou-se, ainda cedo, professor na área, profissão que quase não chegou a exercer pela rejeição que sua figura despertava. Foi quando em finais dos anos 1980 fundou um coletivo artístico – Las Yeguas del Apocalipsis. O grupo que tinha entre outros nomes, o do poeta Francisco Casas, então estudante de literatura, permitiu a montagem de performances recebidas como atrevidas, mas dotadas de alto conteúdo político de esquerda em pleno auge da ditadura militar. Nesse período, Pedro abandona o sobrenome paterno, Mardones, e passa a se chamar por Pedro Lemebel, sobrenome da mãe. A mudança não foi gratuita; o próprio escritor explica que “o Lemebel é um gesto de aliança com o feminino, inscrever um sobrenome materno é reconhecer desde a minha mãe a ilegalidade homossexual e travesti”.

O grupo Las Yeguas del Apocalipsis. Pedro Lemebel (o de chapéu). 

Para além das performances, das publicações soltas e panfletárias, Las Yeguas ficou conhecido como um grupo de afronta e intervenção a vários públicos numa tentativa de chamar atenção para pautas caras aos discursos do seu tempo no Chile. Até então, Lemebel não se havia se dedicado à matéria literária que só começa quando, em 1980, integra-se a um grupo de escrita criativa. Começou escrevendo contos e com eles participou de diversos concursos literários até obter, três anos depois, um prêmio pelo texto “Porque el tiempo está cerca”; organizado pela Caja de Compesación Javiera Carrera, o conto ganhou uma posição exponencial com sua inclusão na antologia editada a partir do concurso.

O conto de 1983 já trouxe as marcas iniciais das temáticas perseguidas pela sua escrita, essas, intimamente ligadas com suas origens e as dificuldades do mundo gay entre os de classe baixa na periferia chilena. “Porque el tiempo está cerca” é o relato da vida de um jovem que, logo depois de ser abandonado por sua mãe e rejeitado por seu pai, começa a prostituir-se para viver, longe do cômodo bairro de Providencia para exercer sua nova profissão nos sórdidos antros do centro de Santiago.

Foi nos cursos de escrita onde conheceu nomes como Pía Barros, Raquel Olea, Diamela Eltit, Nelly Richard, escritoras de forte atuação feminista, opositoras ao regime militar e interessadas em abrir outras vias de acesso às entidades acadêmicas oficiais através da rejeição às práticas até então em voga.



É desse período que se intensifica sua atuação de esquerda. Em 1986, por exemplo, numa reunião política da esquerda em Estación Mapocho, por oposição ao regime de Pinochet, Lemebel apresentou-se vestindo, pela primeira vez, seus sapatos com salto alto e maquiado com o símbolo comunista da cruz e o martelo cobrindo a parte esquerda de seu rosto. Na ocasião leu um texto que já correu o mundo, o manifesto “Hablo por mi diferencia”, misto de conto, crônica e poesia e que foi publicado em 2002 numa compilação preparada por Juan Pablo Sutherland – A corazón abierto: geografía literaria de la homossexulidad en Chile. Foi nesse ano que publicou mais sete de seus contos na antologia Incontables.

Além desse título publicou La esquina es mi corazón (1995), Loco afán: crónicas de sidario (1996), De perlas y cicatrices (2010), Zanjón de la Aguada (2003), Adiós mariquita linda (2004), Serenata cafiola (2008), Háblame de amores (2012) e Poco hombre (2013) – todos de crônica, gênero que praticou a larga em veículos como La Nación, as revistas Punto Final e The Clinic – todas, mídias de forte penetração esquerdista. Escreveu um romance, Tengo miedo torero (2001).

Apesar de seu quadro de saúde, Lemebel pode se despedir de seu público. No último dia 7 de janeiro, em pleno Festival Internacional Santiago a Mil, o escritor ousou deixar o hospital e chegar ao Centro Cultural Gabriela Mistral, onde foi realizado um conjunto de homenagens em torno de seu nome e de sua obra. Deixou aos leitores obras inéditas que, certamente ainda virão a lume.

Ganhador do Prêmio Ibero-americano de Letras José Donoso em 2013, Pedro Lemebel recordou sua carreira como escritor como um jogo, "como uma proposta de meu amigo Sergio Parra [seu amigo e proprietário da livraria Metales Pesados] e aceitei. Nunca imaginei que tomaria tanta força popular. Uma adesão carinhosa de meu público leitor".

Deixou-nos vitimado pela mesma doença que levou-nos Kafka, Pinter e Cavafis, este quem escreveu: “Nada me reteve. / Me libertei e fui. / Havia prazeres que estavam / tanto na realidade como em meu ser, / através da noite iluminada. / E bebi um vinho forte, como / só os audaciosos bebem por prazer”.

***

O Chileno Lemebel

Por Alejandro Zambra

“Se não lerem Lemebel neste curso, não vão ler em nenhum outro”, nos disse Soledad Bianchi numa manhã de inverno. Acabávamos de conhecê-la, nos explicava o programa de Hispano-americana V, que não devia incluir autores chilenos, porque para isso estavam os ramos da Literatura Chilena, mas ela queria que lêssemos algumas crônicas de La esquina es mi corazón. Agora custa explicar a valentia desse gesto. Não era fácil interpelar a uma academia que vigiava zelosamente pelas linhas do conhecimento, que ainda é marcada pela homofobia e pelo classismo, e a voz de Lemebel provocava desconcerto, rejeição e incômodo. Falo dos anos noventa, que parecem tão nebulosos, mas o que seria todavia se então não houvéssemos lido a Lemebel.

Durante uma ou duas semanas houve rumores de escândalo e inclusive um par de companheiros queriam juntar assinaturas para uma reclamação formal: tínhamos apenas um semestre para revisar 50 anos de literatura hispano-americana, já permaneceriam dezenas de poetas e outros tantos narradores fora do programa, mas Soledad havia preferido colocar o chileno Lemebel, que, além de tudo, não escrevia “literatura” se não crônicas, um gênero menor e depreciado. 

No final nada foi reclamado, mas recordo essas discussões. Talvez fosse nossa linguagem nesse tempo quando todavia éramos sensíveis ao prestígio da gerigonça acadêmica, mas suponho que logo os assovios e as cervejas surtiam efeito, e terminávamos falando da vida, de nossas vidas. Eu defendia Lemebel, mas não porque o houvesse lido, mas porque o havia visto, o havia cumprimentado certa vez, e isso para mim era motivo suficiente. Mas talvez o defendia melhor porque havia me apaixonado à primeira vista por Soledad Bianchi e estava disposto a assumir cada coisa que ela dissera como uma verdade instantânea.

Conto tudo isso para chegar a uma cena recente, em outubro de 2013, no mesmo cenário, a Faculdade de Filosofia da Universidade do Chile. Me sentei junto a Soledad, ao fundo do auditório, para assistir a forte e brilhante performance que um dos jovens de Lastarria fez a partir do Manifesto de Lemebel. Depois ele próprio subiu ao cenário, com a voz ferida, sequestrada pelo câncer, mas transformada, graças ao milagre sutil de um microfone, em sussurro metálico e envolvente. Talvez na metade de um largo aplauso, recordei essa antiga turma, essas discussões, o permanente menosprezo desses anos. Agora o nome de Pedro Lemebel se escreve com propriedade nos programas de Literatura chilena. Sua obra é estudada em universidades de todo o mundo, se fala dele na imprensa, no rádio, na televisão, porque seus livros criaram um público que não existia. Seus livros mudaram vidas. Dizer que sua obra é importante para a literatura chilena será mesquinho: sua obra é importante para o Chile.

“Nem sequer teu rosto estampado nas capas dos jornais podia reviver o carnaval partiperro de tua inesgotável festa”, escreveu Lemebel depois da morte de Andrés Pérez. É difícil não recordar essas palavras, que tão bem expressam, agora, um sentimento coletivo. É difícil não pensar na crônica impossível que escreveria sobresseu próprio funeral. Riríamos com suas observações contundentes e acertadas, agradeceríamos seu olhar ácido e generoso, suas inimitáveis discussões, sua valentia, sua descarada ternura, sua linguagem sapecada na rua e na universidade. Sua obra forjada na noite, bairrista: na vida e não na literatura.

* O texto de Alejandro Zambra foi publicado em La Tercera, ed. de 24 de janeiro de 2015.




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