Que fazer se encontram Cervantes?





Se o maneta de Lepanto vivesse até ao Prêmio Cervantes o dariam a Lope de Vega. Assim diz o escritor Andrés Trapiello, entre a raiva e o desespero. Sabe que é uma predição pessimista, mas não pode agitá-lo quando lhe mencionam que estão buscando com afã os ossos do Príncipe das Letras na cripta do convento das Trinitárias de Madri (ver ligações a esta post no fim do texto). E o que fazemos com tão famosa ossatura, se a encontrarmos? “Apareça ou não, é evidente que este país não a merece”.

No ano da graça de 1568, uma peleja violenta com espadas, muito ao gosto da época, deixa ferido, segundo alguns cervantistas, Antonio de Sigura, que era algo assim como o encarregado das obras do rei, e Felipe II dita um castigo de extrema severidade: que detenham Miguel de Cervantes, o condene a 10 anos de prisão e seja cortada sua mão direita. Saiu fugindo o perseguido até Itália, dizem algumas crônicas, escondeu-se entre os terços comandados por Juan de Áustria e, em vez da direita, foi perder sua mão esquerda, “na mais memorável e alta ocasião que viram os séculos passados, nem esperam ver os vindouros”, ou seja, a batalha de Lepanto, o mesmo que, a Liga Santa contra os turcos.  

Os três tiros recebidos, dois no peito e um no braço, pode ter sido a salvação de não lhe terem amputado a mão, mas terá ficado paralítico dela para sempre e constitui hoje, séculos mais tarde, nas provas físicas mais convincentes para identificar os restos que buscam entre três dezenas de sepulturas. E o que fazemos com tão famosa ossatura, se encontramos com ela? “A mim gostaria que a partir dos seis dentes, isso que dizem que tinha, reconstruam o cadáver inteiro, o embalsamem e o disponham na Praça de Espanha como Lênin na Praça Vermelha, para que possamos todos vê-lo”. Quem com tanta brincadeira se expressa agora é outro escritor, Antonio Orejudo, quem, sobre esse assunto da ossada de Cervantes, se ri: “Se há que jogar o jogo até o fim, mas eu, de verdade, estou à margem dessas reconstruções fetichistas, homenagear um escritor vai em outra direção: trata-se de explicar sua obra, de colocá-la à luz do dia, de mostrá-la às crianças, de lê-la, tudo além disso é show business”, lamenta. E muito se teme, ele e outros, que isso vá findar como a “reconstrução de um dinossauro”.

Fenomenal dinossauro, em todo caso, nada menos que o pai do Quixote. A professora de Literatura Rosa Navarro Durán, uma vez jurada do Prêmio Príncipe de Astúrias e do Cervantes, tem uma ideia que espanta o pessimismo e dignifica o autor: “Se encontram o cadáver, eu faria uma pequena tumba discreta, com bom gosto, sem adornos, e o deixaria no mesmo local onde está, ele assim deve ter elegido, mas o abriria ao público, que venham todos e deixem dinheiro, que se promova seu nome, que se converta numa atração turística de grande repercussão midiática”. Rosa Navarro não desperdiça risadas quando enumera esses planos, mas diz que o objetivo é sério: “Se cada um dos que lhe visita lê sua obra, bem empregados estarão os esforços, porque, ao final, a única forma de honrar um escritor é lê-lo. E sou de raiz erasmita e, como ele, digo: é melhor ler São Paulo que venerar seus ossos”.

Esse emocionante trabalho de radiografar os restos da cripta trinitária, no convento de São Ildefonso, onde descansam outras pessoas, para encontrar Cervantes, que ali foi enterrado com sua companheira, Catalina Salazar, é comandado pela Sociedade Científica Aranzadi e conta com investimentos da sua parte de 50 mil euros; outros 12 mil foram gastos na primeira fase do projeto. Os especialistas, forenses, arqueólogos, geofísicos, uma espetacular equipe sob o olhar de meio mundo, não trabalham apenas em torno de um tesouro, têm já feita a triagem dos restos entre restos de madeira podre, ossos infantis e crânios femininos e até já encontraram um ataúde com as inicias M. C., que lhe deixaram em suspense por algumas horas (ver ligações a esta post no fim do texto). Mas, parece que a ilusão “foi-se e não veio nada”, ao menos até o presente, quase um mês depois do achado.

Essa feira de ossos não parece, sem dúvidas, emocionar muito aos escritores, cervantistas e filólogos: “Isso está a caminho de converter-se na busca do Santo Graal pelo III Reich”, se indigna Trapiello. Mas logo se abranda ante a figura de Cervantes: “Eu serei o primeiro que lhe levará um ramo de rosas”, diz. “Mas não fará falta mesmo que apareça, pois aos que não o leram nunca ele lhe fez falta, mas eu sei em que lugar está colocado em minha vida. Que termine logo essa loucura e deixem tudo como estava, sem peregrinações a Lourdes... O menos grave que pode acontecer é que seja feito um funeral de Estado a quem morreu pobre e desdenhado por seus colegas”, volta a indignar-se.

Sequelas para identificar Cervantes. Fonte: El País.

Trapiello teme que um espetáculo em torno dos restos de Cervantes lave a imagem de um país que não tem cuidado de seus gênios como mereciam. “Podem fazer crer que aos homens de talento e gênio tenham lhe honrado em vida e em morte...” Rosa Navarro opina que há algo de muito mais prosaico nessa iniciativa, que ela não despreza: “Tudo isso me parece uma exibição de um método científico... Estamos tão felizes em poder averiguar a identidade das pessoas com as novas técnicas que o provamos com os famosos, Ricardo III, Cervantes... Toda experiência científica para demonstrar nossa eficácia detetivesca. Não lhes interessa a utilidade da identificação, mas a identificação em si mesma. Mas não importa, que se gere entusiasmo coletivo associado a um feito cultural é importante, embora a meus ossos me tragam sem cuidado”.

Verdadeiramente, se conseguem encontrar o que buscam, a utilidade não aumentará em muito o conhecimento escasso que se tem sobre a vida do autor de Dom Quixote. “Eu defendo que era um homem de caráter, embora alguns cervantistas não acreditem que fosse ele quem deixou Sigura ferido e pensam que o rei buscava outro Miguel de Cervantes para dar-lhe castigo. Mas ele acabou como soldado nos terços que se enfrentaram aos turcos em Lepanto, vários anos fora de Espanha”. Alguém pode passar um dia inteiro escutando o professor Jorge García Lopez, doutor em filologia espanhola, que finda uma biografia de Cervantes a sair em abril de 2015. “Era um 7 de outubro de 1571, às doze e meia da manhã quando começou de verdade a batalha... Miguel havia amanhecido com febre e os companheiros lhe disseram para não se expor muito, mas ele insistiu em colocar-se na proa, talvez a parte mais perigosa do barco, a que entra em choque com as demais galeras antes de iniciar o corpo a corpo entre espadas e arcabuzes... Foi uma matança em que caíram mais de 30 mil homens. Ele recebeu aqueles tiros que lhe deixaram entre a vida e a morte, esteve meses parado.”

“Deixá-lo onde está, ele assim o queria. Mas, sim me parece interessante identificá-lo e que o público possa visitá-lo. Outra coisa é que um escritor se define por suas obras e este é o escritor máximo, o grande referente europeu para a literatura posterior”, assim defende Carme Riera, membro da Real Academia Espanhola, escritora e cervantista. Para Francisco Rico, outro cervantista, o corpo deve ficar onde está. “O cadáver é o excremento de uma vida e o único que não merece é ser tratado como indigno. Os livros, as obras, em troca, são os frutos e as flores que se mantém sempre frescos e saborosos. Posso entender que se renda certo culto fetichista”, diz, mas crê, que como dizia Machado, que ao aparecer o soldado desconhecido que se homenageia em sua tumba havia que dizer-lhe: “Torna a la huesa, oh Pérez, infeliz porque nada disso vai contigo!”.

Ligações a esta post:
Tudo começou aqui, "Em busca de Miguel de Cervantes".
Depois, quando foi encontrado o ataúde com as iniciais do escritor, aqui.


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