Minha maior lição lendo sobre conservadorismo: não ver o outro como monstro


Por Rafael Kafka



Há um ano, quando houve a corrida eleitoral mais tensa de todas as que testemunhei, eu decidi que era momento de começar a entender o pensamento do outro, de ouvir e ler mais sobre aquilo que eu criticava. Quando adolescente, eu tinha um conhecido que dizia que tinha vontade de ler a Bíblia para entender melhor os argumentos fundamentalistas e assim tecer críticas mais válidas a eles. Achei aquilo interessante e decidi tentar fazer o mesmo, mas parei de ler o livro sagrado cristão ainda no Pentateuco e só retomei a leitura doze anos depois, em 2019.

Mais uma vez me encontro na dificuldade de ter parado a leitura e estou procurando tempo para voltar ao texto, mas mesmo diante dessa dificuldade e do fato do dito conhecido ter virado ele próprio um fundamentalista, eu comecei a sentir um prazer muito interessante em estudar o pensamento do outro, em entender que o que ele diz não é nenhum absurdo. Eu apenas veja as coisas de forma diferente.

Após as eleições, meus colegas de esquerda ficaram prostrados. Aproveitei a folga e decidi ver uma entrevista de um filósofo conservador brasileiro famoso, Luís Felipe Pondé, e fiquei profundamente chocado com algumas posições suas as quais achei muito sensatas. Até então, eu achava absurdo uma pessoa se dizer liberal e conservadora. Em minha concepção, um conservador era alguém que busca cercear o que o outro é usando o discurso do respeito à moral e aos bons costumes e por conta disso conservadorismo para mim era homofobia, fascismo mesmo.

Sou dos jovens que começou a se interessar em política ali por 2013, 2014 e passou anos falando de política baseado em memes na internet. Quando o debate se tornou mais intenso e polarizado, foi preciso se criar uma narrativa a qual se prender, uma retórico a me guiar e eu optei pela retórica típica da esquerda pós-moderna lacradora. Foi preciso em 2016 eu ver o quanto o espírito de manada domina os grupos formados por pessoas desse pensamento, com uma visão politicamente correta das mais irritantes, com a gente se sentindo em uma verdadeiro tribunal inquisitorial por falas preconceituosas que em nossas mentes são atos normais e podem e devem ser desconstruídos – mas são na verdade motivo de apedrejamento – que decidi me afastar dessa retórica e desenvolver minha própria.

Claro que ninguém fala por conta propriamente, pois pegamos influências de outros seres com quem convivemos e trocamos ideias. Porém, senti que a retórica usada por mim, muito presa a uma esquerda voltada para debates fechados em redes sociais em especial sobre temas identitários, não me servia e a meu ver alimentava a retórica reacionária dentro do imaginário mais popular. Afinal, na mente da maioria da população a grande preocupação é ter comida e segurança.

Quando ouço Pondé dizendo que não se importava com a orientação sexual de ninguém e que o Estado também não se importava, devendo focar em pautas mais importantes, fiquei refletindo como até então eu julgava que todo conservador era um sujeito que se pudesse eliminaria todos os homossexuais do mundo. Uma pessoa pode ser conservadora no sentido de defender uma tradição de valores que garanta a sobrevivência da espécie e ao mesmo tempo defender o livre mercado, o Estado mínimo e a liberdade de empreender. Comecei a entender não haver contrassenso em ser conservador e defender a liberdade irrestrita do indivíduo.

Por mais que ainda haja em mim uma verve marxista, cada vez mais pendente para uma visão socialdemocrata, passei a estudar e a ver com interesse a lógica do pensamento liberal, conservador. Percebi elementos que poderia usar em minha retórica para defender junto a essas pessoas meus posicionamentos. A leitura da Bíblia, que preciso retomar, me ajudou a discutir com alunos de seios mais religiosos visões não tão pesadas do texto poético, de modo que eles não se sintam amedrontados diante da teologia do terror que os cerca quase sempre. Procurar entender o ponto de vista do outro me fez entender que a retórica de quem se diz conservador assim como a retórica usada por mim tempos atrás quando eu me via mais envolto em ler páginas de esquerda na internet é muitas vezes motivada pelo medo, pelo fato de não vermos o outro do lado e pela velocidade da internet, a qual nos condiciona a dar respostas prontas e rápidas para não perder o embate.

Lendo no presente momento Como ser um conservador?, de Roger Scruton, percebo cada vez mais como as redes sociais são uma ferramenta a evoluir em uma velocidade estonteante sem nos dar tempo de nos adaptar a ela. Não há em Scruton uma figura repulsiva a defender que todos os diferentes de um dado padrão fiquem dentro do armário. O filósofo defende apenas que mantenhamos um caminho de estabilidade dentro do processo de mudança e esse caminho é a herança cultural cedida ao povo europeu. Claro que podemos aqui discutir uma série de coisas, em especial aquelas ligadas ao colonialismo e o modo como o povo europeu explorou e dizimou comunidades locais e nativas da América e da África. Todavia, é importante que nos prendamos ao texto para fazer a crítica adequada e o texto conservador é muito claro em seus propósitos.

Nesse sentido, cada vez mais sinto a necessidade de se fazer um debate focado em difundir a leitura. Sempre encontraremos a fala de quem diz que sociedades letradas fizeram barbáries como o nazismo, mas respondo que mais do que discutir leitura devemos discutir o que é a leitura e isso perpassa por um processo consciente de democratização do prazer do texto. Só podemos discutir racionalmente lendo e ouvindo o outro e a leitura deve ser mediada como convite a conhecer o outro.

Escrevi já sobre isso em textos de anos anteriores. Há leitores por status, leitores que amam dizer que leem pelo prestígio social gerado, e há leitores desassossegados, aqueles que leem buscando o prazer de descobrir, um combustível para a sua inquietude. Nossa sociedade tem poucos leitores e ainda menos leitores desassossegados. Tais leitores podem e devem ser provocados a ler o outro lado, a entender o que se passa na mente daqueles que se opõem a suas ideias, para eles entenderem que ali não há necessariamente uma visão defensora de crimes e selvageria, mas apenas uma forma de pensar a realidade que não é a mesma que a nossa.

Ainda assim, podemos encontrar os pontos de confluência e o mais interessante de ler o pensamento do outro é justamente isso. Scruton em seu ensaio procura mostrar as verdades existentes em diversos pensamentos que se opõem ao seu conservadorismo, inclusive o socialismo, o internacionalismo e o liberalismo econômico. Isso mostra da parte do intelectual um profundo esforço em procurar entender o ponto de vista de um interlocutor para fazer uma crítica pontual e bem feita. Quando ele se refere ao socialismo como o desejo de criar seres com ontologia homogênea, digamos assim, eu tendo a discordar, pois o mundo socialista ideal seria um mundo em que todos teriam acesso ao necessário para viver e assim desenvolver suas potências intelectuais e espirituais de forma plena e livre. Mas quando observo o que foi o comunismo real e seus lastros dentro da militância de esquerda, sou obrigado a concordar com Roger.

Dia desses, eu vi um programa no qual Joel Pinheiro Leonardo Sakamoto, dois intelectuais de polos opostos no espectro político, debatem sobre temas políticos da atualidade. Respondendo perguntas e comentários de internautas, em dado momento ambos se deparam com o comentário de que Joel não seria de direita e sim de esquerda, pois em suas posições ele defende minorias, por exemplo. A sua resposta é o foco no livre mercado para justificar sua visão de direita e eu fico pensando que muitos de nós, de esquerda, julgamos que somos os únicos defensores do mundo da justiça social e daqueles que estão em posição de fragilidade. Mesmo com o mercado usando a lógica das pautas identitárias para ganhar dinheiro em propaganda, nós realmente achamos muitas vezes que somente a esquerda está preocupada em debater gênero, sexualidade, racismo, etc.

Talvez o modo como o liberal conservador quer discutir isso é que seja diferente e para nós pouco convincente. Milton Friedman, em Capitalismo e Liberdade, prefere focar na educação focada na liberdade para que os futuros consumidores não aceitem jamais consumir de marcas racistas no que nas sanções em forma de lei para acabar com o racismo. O argumento de Friedman é interessante e o uso muito em sala em consonância com outro conceito de liberdade, o de Paulo Freire, pois faz os alunos pensarem que o maior bem que eles possuem é sua liberdade de ser. Todavia, penso na eficácia das sanções por leis – inclusive em arenas esportivas como vimos no caso do jogo Vasco x São Paulo, no campo da homofobia – desde que haja uma série de debates e metodologias de ensino focados em ensinar o que é o outro e porque ele deve ser respeitado em toda sua dignidade.

Por mais que não concorde com o conservadorismo, vejo-o hoje como ele é: uma forma de pensamento. Fico feliz de me ver mais distante da retórica do desespero das redes sociais e mais motivado a ler sobre política. Penso que dessa forma consigo ser a mudança que quero ver na realidade social de nosso país e viver na prática aquilo que defendo com meu marxismo: somente pelo caminho da leitura podemos nos entender e ver onde podemos melhorar como corpo social.

Comentários

Unknown disse…
Rafael, parabéns pelo texto, por abordar com coragem um tema delicado, e trazer à tona uma outra perspectiva, por muitos ainda inalcançável.

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