A trégua, de Mario Benedetti

Por Pedro Fernandes                                                                         

Mario Benedetti. Foto: Eduardo Longoni



Numa das entradas para o breve diário cultivado às vésperas de sua aposentadoria, Martín Santomé, ao refletir sobre a vida e sua descontinuidade, tece uma leitura sobre uma dessas frases que pela força do hábito são tornadas em expressão de efeito e esta é quase-sempre utilizada no interstício entre a vida ativa, baseada na rotina do trabalho contínuo, e a vida posterior a esse tempo: “Mas o senhor é ainda um homem jovem!” O narrador se concentra no termo em destaque, se questiona sobre a quantidade de anos que lhe restam e sobre a angustiosa sensação de que a vida lhe corre agora agressiva e rapidamente para o fim. “Porque a vida são muitas coisas (trabalho, dinheiro, sorte, amizade, saúde, complicações), mas ninguém vai me negar que quando pensamos nessa palavra, Vida, quando dizemos, por exemplo, que ‘nos agarramos à vida’, estamos assimilando-a a outra palavra mais concreta, mais atraente, mais seguramente importante: estamos assimilando-a ao Prazer” ― reflete.
 
Assim, este romance é significativamente isto: o registro sobre o último prazer dado casualmente a um homem marcado desde cedo pela responsabilidade do adulto e pela dedicação aplicada a todo o metodismo do seu pequeno quinhão de sobrevivência, o repetitivo trabalho numa repartição de contabilidade, como se a existência o quisesse recompensar por tanto. Perfeitamente acomodado à monotonia das coisas, o diário pode ser bem, inconscientemente, não apenas o registro da passagem entre a vida centrada no trabalho e a posterior a isso; pode ser o despertar de uma consciência do homem no mundo, uma visita lúcida às memórias a fim de registrar outra passagem, da vida burocrática para a vida simbólica, incluindo sua inscrição fora da galeria dos esquecidos nas garras de Cronos.
 
Mas se, em quase cinquenta anos, a vida de Santomé nunca se moveu para o excepcional, esse despertar parece que fica a meio-caminho. Não há aqui o nascimento de um novo homem, a revelação notável de uma consciência que sempre se moveu à sombra repetitiva do seu pequeno cotidiano. A vida vergastada em seu próprio curso natural e material, aliás, é o interesse de Mario Benedetti; homens e mulheres integrados à comodidade da ordem. Mesmo que um arroubo qualquer os levem a se manifestar ativamente sobre sua condição é para logo se notarem incapazes de avançar contra a corrente. Ora, isso é uma faca de dois lados: exalta-se, no sentido de por em relevo, as existências anódinas, mas essa pequena ode aos insignificantes também tonifica a resignação um pouco detestada pelo narrador de A trégua e curiosamente exercida na sua mais perfeita forma. Até que ponto se resignar é uma alternativa mobilizadora?
 
Se o diário de Martín Santomé capta, casualmente, a última centelha na pequena fulguração da vida de um homem, é um objeto fracassado, uma vez que o prenúncio de uma condição diferente da exercida durante a vida de trabalho perde-se ora no testamento final sobre um homem de vida nenhuma ora nas aragens de um amor que em nada tem de transcendente. Esta é, possivelmente, a força mais autêntica de se captar a melancolia dos nossos últimos dias, presa numa variedade de enredamentos: físico e moral, sobretudo. Quer dizer, A trégua, se reveste de uma verdade sobre os traumas que se instauram entre o ser jovem e ainda ser jovem, sendo que, neste segundo caso, o ainda, para repetirmos as palavras do narrador, significa está acabando. Capturar esse instante, naturalmente universal, com a precisão que se mostra nesse romance, é o mérito maior dessa obra que catapultou o reconhecimento de Mario Benedetti fora do Uruguai.
 
Mas, qual o registro que à primeira vista poderia se constituir na excepcionalidade da vida de Martín Santomé? A descoberta sobre o renascimento do amor, ou quiçá, o nascimento do amor, uma vez que a vivência com Isabel se difere da vivência com Laura não apenas nas relações entre idades. O casamento muito cedo circunscrito ora na pressa da vida adulta ora pelo interesse no pleno exercício do encontro dos corpos ― mais este que outro, uma vez sê-lo impossível pela onipresença da sogra de Martín ― não é uma relação de acordo verbal cujo intuito é puramente o gozo ainda que a ideia de liberdade entre os dois seja carcomida pela posse e o medo repentino da traição e o desfazimento da bolha de sabão equilibrada a muito custo entre o zelo cuidadoso de um e certa indiferença do outro.
 
Parece importante recuperar outro instante do diário de Santomé que justifica o instante de duração da trégua. O contexto agora é a travessia por três minutos de chuva até que os amantes cheguem ao ninho do amor projetado por ele como sua melhor realização pessoal; no pequeno apartamento, Avellaneda acompanha, pela janela do quarto, envolta numa manta, a chuva e ele se aproxima para compor o quadro do casal adâmico contemplativo. “Eu nunca havia sido tão plenamente feliz como naquele momento, mas tinha a aguda sensação de que nunca mais voltaria a sê-lo, pelo menos naquele grau, com aquela intensidade”, diz. E emenda: “O ápice é assim, claro que é assim. Além disso, tenho certeza de que o ápice é só um segundo, um breve segundo, um clarão instantâneo, e não há direito a prorrogações.” O elemento que se inscreve nessa afirmativa é o gozo ou o prazer, repetindo outra vez os termos do próprio narrador. E nele, por extensão, inscreve-se a trégua, o pequeno filamento que amplia em Martín Santomé a beleza de estar vivo.
 
Nesse sentido, o que se registra é também a vivência da última centelha de vida, o acesso a uma dimensão que esta personagem julgava perdida ou inalcançável. Ainda que os detalhes sobre o curto tempo de casado sejam escassos, estes revelam o suficiente para entendermos que foi uma relação de convívio marcada pelas obrigações matrimoniais. Já a longa viuvez, vivida pela mesma mecânica, agora, mais fisiológica do corpo, ao ponto de uma das amantes, sublinhar que Santomé exerce o sexo como se um homem de profissão. Apenas com Laura Avellaneda é que se revela alguma lógica do amor, mesmo que sua autenticidade possa ser questionada, uma vez ser apenas o ponto de vista dele o que acessamos.



 
Não significa dizer que a jovem de vinte e quatro anos, recém-chegada à repartição de trabalho de Martín seja uma mulher desprovida de instinto. Encontramos em algumas entradas desse seu diário que a atitude de aceitar o imbróglio amoroso proposto por ele, é dela e encontramos o seu ponto de vista sobre o amor e o sexo, tal como é exercido pelos homens, tal como foram impostos por eles sobre as mulheres. Como dissemos acima, repousa em situações como esta, certa propensão rebelde das figuras construídas por Mario Benedetti, ainda que o exercício da rebeldia não se vislumbre ou se mostre por uma via inadvertida. Por exemplo, sabemos da consciência de Laura sobre como os homens aceitam facilmente o sexo com uma força natural do corpo e como estes incutiram nelas a culpa por isso na longa cultura de dominação, entretanto, a atitude dela não é a de se rebelar contrária e finda por aceitar o dominante. Mas isso é deveras escorregadio ― a faca de dois gumes que referimos acima ― uma vez que a posição assumida por essa jovem, aceitar o envolvimento amoroso com um homem mais velho e que exerce todas as atitudes ativas do dominador, significa, de alguma maneira uma ruptura com a determinante imposta a elas: a de se casar a fim de levar adiante o modelo eterno da responsabilidade sobre a formação da família. Curiosamente sua submissão, nesse caso, é uma afronta para uma sociedade que muito devagar começava a engatinhar nisso que chamamos por liberdade individual feminina ― e ainda um tanto cara às mulheres do nosso tempo.
 
A situação amorosa de Laura Avellaneda pode ser comparada, pela atitude libertária, com a da filha de Martín Santomé, quem, por conta própria, inicia um relacionamento que não se preenche apenas do companheirismo ou da amizade. A liberdade sexual de Blanca, embora aceita com parcimônia pelo pai, não deixa de causar espanto entre os irmãos ― é mesmo esperada qual seria a atitude dos dois sem algum zelo pela autoridade paterna. Se a princípio, isto é, aos olhos de Esteban e Jaime, isso parece inusitado, inusitado mesmo é perceber no primeiro a maior resistência. E esta não é manifesta apenas pela contínua indisposição assumida entre pai e filho; é que Esteban, tão avant-garde quando o assunto é liberdade individual, demonstra-se um conservador nos costumes, o que talvez justifique sua natureza de ressentido, como observa Santomé.
 
O que a mise en scène amorosa envolvendo Martín Santomé e Laura Avellaneda mais revela, por aproximação e por contraste, é o declínio da vida, começado, claro está, pela posição social do aposentado, o homem de tempo livre que inicia um diário para preencher o tempo ou mesmo encontrar qual seu novo lugar, e continuado pela degeneração física, como o narrador se revela nos comparativos entre o homem de pouca idade casado e o amante de quase cinquenta anos: “meu corpo de Isabel e meu corpo de Avellaneda”. O contato dos corpos, aquele jovem e este velho, leva nosso narrador-personagem se reconhecer como um fantasma da sua juventude, uma caricatura de si próprio. Não são apenas os vestígios de uma decadência o que se mostra, é o registro sobre o esvair do viço da vida. E o destino desse enovelamento reafirma outra vez a força inexorável do tempo.
 
O diário de Martín Santomé não é feito apenas do contato com o acaso da existência e sua última tentativa de adiamento pelo exercício do amor. A narrativa, ao passo que toca na situação familiar, mostra ainda certo retorno da memória para com o passado pelo reaparecimento de algumas das amizades de rua nos idos tempos de sua juventude. Um contato que não é em nada amistoso e sim continuamente corroído por uma ironia mordaz, por vezes, irreprimível e ferina, uma liberdade alcançável apenas pelo avultamento da sinceridade com aparecimento de certa maturidade. Abre-se então o que é, possivelmente, o tema preponderante em A trégua: o relacionamento humano. É este o cerne do amor com Avellaneda; o mesmo no convívio com a família, com os do ambiente de trabalho, e com essas aparições repentinas de sua infância e juventude, numa ocasião primeiro esperada como a retirada do homem de seu clã e o isolamento em busca da encontrar o fim com a devida serenidade.
 
Nesse sentido, o termo que denomina o romance refere-se ao parêntesis instaurado pela cena amorosa inaugurada numa vida sem perspectivas, mas alcança outras significações; é também um instante de reabertura de Martín para com o seu entorno e um passado feito de certa complacência. Não é o caso de uma remissão com a consciência ― esta personagem não é culpada ou atormentada com o que tenha feito ou deixado de fazer. É uma tentativa de reencontrar na figura que foi resquícios dela no seu presente ou acessar lugares indiscretos da memória que sejam capazes de levá-lo a compreender o homem maduro, ou ainda se esse olhar ácido sobre o mundo e sobre o seu entorno é resultado de alguma inteligência ou da pura mediocridade que alguns o acusam. A trégua é, assim, o instante que todo aquele não surpreendido pela morte como um acaso atravessa de alguma maneira. Perto disso ou não, é um romance que diz tanto de nós mesmos, com uma aberta sinceridade.
 
 

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