Memórias do subsolo, de Fiódor Dostoiévski

por Pedro Fernandes



"Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários." Famosa negativa da literatura feita pelo autor de Memórias do subsolo logo numa nota de entrada a primeira parte do texto que mais na frente se é corroborada pela própria personagem: "Está claro que eu mesmo inventei agora todas estas vossas palavras." Negativas que instauraram ou pelo menos reintroduziram novas reflexões entre as complexas fronteiras entre ficção e realidade; onde que estaria o fim de um e início do outro.

Memórias do subsolo, de 1864, antes, portanto de obras como Crime e castigo, é não apenas por constatações desse tipo mais uma obra clássica da literatura. Não também pelo fato de seu autor ser colocado entre os clássicos, mas é que nela o rico estilo de narrar dostoiévskiano - suas indas e vindas, seus meneios com a palavra e com o pensamento - e além disso, o caudal de reflexões que este texto instaura naquele mais inocente leitor são elementos, por assim dizer, vindos do próprio texto e que o fazem clássico, por natureza.

Tanto que, o Homem do subsolo, esse sujeito destacado do espaço social da planície, que enxerga o homem nas suas raízes subterrâneas, pode ser aqui entendido como elemento caracterizador para um tipo de consciência humana e social - aliás, não faltam leituras das mais variadas sobre. Mas, findada a leitura do livro de Dostoiévski, tomo nota de que esta personagem pode ser nada mais que aquele tipo possuidor de uma sensibilidade aguçada a ponto de perceber determinadas nuances não visíveis ao olho comum, seja porque estamos tão cegados pela aparência, seja porque o que se esconde por debaixo dela não é tão simples de ver.

Com seu comportamento meio ranzinza, mas mais que isso, sarcástico e irônico, não mede palavras para tecer uma camada não destrinchável, por vezes, de descrédito a raça humana. Não há, entretanto, nesse comportamento apenas um pessimismo acerca do homem, mas uma perspectiva de sombra dos sujeitos - é o seu lado mais escuso, escuso às vezes até dele próprio que a personagem em seu tom vociferante, vai delineando ao longo da narrativa. Diga-se, estamos diante de um Dostoiévski ensaiando seus primeiros seres que, mais adiante, tanto dirão de nossa psicologia: "Penso até que a melhor definição do homem seja: um bípede ingrato."

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