O caminho de Mônica também é nosso. Uma leitura do livro Mônica vai jantar, de Davi Boaventura

por Tiago D. Oliveira




Perceber quando os sinais mais sensíveis começam a indicar uma mudança. Julgar. Romantizar. Amuar. Como pensar o lugar do outro sem automaticamente equalizar o nosso em um plano racional? Passionalidade: julgar, romantizar, amuar. As consequências do outro em nós. Aprisionar. Espraiar o indigesto individual em um mundo de valores cadentes que não assiste, apenas oprime e dobra a produção de modelos violentos, alienados e cegos dentro de um sol que quer a todos, como um grande emoji negando o tempo enquanto devora tudo neste mesmo labirinto que se tornou a vida no país em que vivemos. Julgar. Romantizar. Amuar. O ciclo agarra-se em nossos dias como mecanismo natural de defesa e seguimos repetindo padrões que muitas vezes não percebemos como o algoz. O outro: julgar, romantizar, amuar. De quando em quando o verdadeiro algoz de nós é um nós singular que criamos enquanto fechamos os olhos no gozo calmo das horas passando. A literatura possibilita a representação verossímil de uma queda, registra e contextualiza as reações de uma sociedade doente em constante crescimento. O silêncio é o grande palco atrás de cada porta.

O silêncio das cenas de Mônica vai jantar, de Davi Boaventura, é preenchido a todo momento por uma voz que consegue narrar uma reflexão pendular que é alimentada em um ciclo repetitivo de suposições. Quando Mônica descobre que seu companheiro foi espancado por se masturbar em um ônibus, ela inicia o seu ciclo de defesa para aquilo que não entende/ não consegue aceitar. O silêncio é trocado em alguns movimentos de portas ou torneira em um vão diferente do quarto em que ela se tranca na tentativa de arrumar-se para um jantar da empresa em que é constantemente abusada moralmente por um chefe machista e excessivo. Outro traço de declínio moral contemporâneo muito bem desenhado por Davi em sua narrativa. Pensar o silêncio desta mulher como reação para um acontecimento de dor é um passo firme diante de um livro atual e necessário.  
 
O escritor baiano constrói em 96 páginas uma novela que aposta tanto numa estética própria, em que não utiliza pontuação nem marcação de ideias em parágrafos, usando com maestria uma direção de leitura que reimaginada cria um fluxo de palavras próprio que acelerado atravessa o final de um fonema para quase invadir o início de outro. Apertava o livro durante a leitura em uma reação inconsciente que só percebi depois de finalizá-lo, quando procurava um espaço na estante e pensava nesse vazio de um tempo em que a personagem busca reencontrar a sua imagem. Lançado pela Dublinense no selo Não Editora, Mônica vai jantar já é um livro importante que dialoga com uma realidade violenta ao passo em que aponta para a cultura das mentalidades de um lugar.

A protagonista feminina, que tinha aparentemente um relacionamento sem grandes problemas, estável, sofre uma surpresa quando seu marido entra em casa coberto de sangue e muito machucado, havia sido espancado depois de se masturbar em um ônibus. Diante desse acontecimento ela é levada a repensar os caminhos que tomou em sua vida. As palavras sem pontuação mostram o desequilíbrio da personagem, que também vivia uma rotina de trabalho tentando gerir uma relação difícil com seu chefe. Pensar sobre este ponto da narrativa leva a crer em uma ideia de ilusão da normalidade, um levantar abrupto de reações que começam a localizar e redefinir os passos seguintes. Desta maneira a condução passa também por um norte didático, no que se coloca o livro como uma potente ferramenta social. Observar as reações de uma personagem que era envolvida pela inércia de seus passos nos anos, é para o leitor uma chance sensível ao que pede o tempo em que vivemos. A paz é custosa. A felicidade exige coragem. A reação precisa ser constantemente exercitada.    
 
Mônica se mantém a todo tempo em seu quarto e o marido na sala. Ela se tranca para se arrumar para um compromisso de trabalho, um jantar com seus colegas e chefe. Entre ações rotineiras de pentear o cabelo, escolher uma roupa, se maquiar, ela se perde em seus pensamentos e mergulha na prisão das neuroses, um trampolim que a faz repensar a sua relação matrimonial afincada em terreno móvel, o significado de seu papel no trabalho, de como é assediada por seu chefe e consequentemente sente o seu lugar no mundo. Um jantar que ela não quer ir, que provoca enjoo, a mesma sensação que sente quando volta a pensar no que seu marido fez. O fluxo contínuo admitido na narrativa coloca o leitor quase que dentro das cenas, o ritmo nos faz sentir até a respiração da protagonista e todo o seu inferno astral vivido.      
    
Ao longo dos anos de leitura fica a prática para sentir verdadeiramente o peso de um livro. Depois de dias ainda sentia a passividade e a confusão da personagem criada por Davi Boaventura, todos os seus fluxos e digressões pairavam em minha visão como se eu estivesse ao lado de sua dor em carne, mais ainda, aquilo me invadia os pensamentos quando olhava para as minhas filhas. Sorte a nossa de vivermos em mundo de grandes transformações em que as mulheres são as maiores forças vitais desse trânsito. Por essa oportunidade para a reflexão que me pego entendendo Mônica quando sai de seu quarto em um rompante e não encontra mais seu marido na casa. Por isso travei os sentimentos e não mais peguei no livro para escrever estas palavras; finalmente entendo que Mônica é um raio deste sol que entra agora pela minha janela. O seu caminho de aprendizado e reconstruções é também o nosso.  
 

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