Os escritores e suas fotos

Por Cristian Vázquez

 
Foto: Vasco Szinetar. Selfie com Gabriel García Márquez. 


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Por que as capas de quase todos os livros incluem uma foto do autor? Desde quando existe esse costume? Talvez seja importante conhecer o rosto de alguém que decidiu que sua ferramenta, sua matéria-prima, são as palavras impressas?
 
A foto do autor não é essencial no livro, isso é claro. Na verdade, ainda existem editoras e coleções que a omitem. Imagino que sua presença no livro esteja relacionada à predominância do visual em nossa cultura. E também com a sensação de que conhecemos melhor alguém se vimos seu rosto. Como se um certo lombrosianismo sobrevivesse nos leitores: o desejo de encontrar em seu olhar dirigido ao infinito, na mão que toca o queixo, na coqueteria mal disfarçada, as chaves para melhor compreender suas obras.
 
O fato é que as fotos estão quase sempre lá. E de maiores dimensões quanto mais vorazes sejam os apetites comerciais dos editores. Em muitos best-sellers, a efígie sempre sorridente do autor ocupa toda a contracapa. Como bem sabemos, os profissionais de marketing não dão ponto sem nó, então a foto do autor deve ser importante, mesmo que não tenhamos de um todo clareza sobre do porquê.
 
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Há fotógrafos especializados em retratar escritores. Sara Facio, Annie Leibovitz, Vasco Szinetar e Daniel Mordzinski são alguns dos mais conhecidos. Em um artigo de alguns anos atrás, intitulado “Fotos de escritor: la verdad de la pose”, Martín Kohan se refere ao desconforto que os escritores costumam sentir quando são fotografados e o que geralmente fazem nessas situações: posam. “Austeros ou embibliotecados, eles posam — aponta; posam para representar o aurático, para fingi-lo, para esconder sua inexistência. Nessa pose, por isso mesmo, se encontra a sua verdade. A pose não vem para encobrir uma verdade, nem para descobri-la; a pose é a verdade.”
 
De tão repetida, afirma o autor de Museo de la revolución, a pose do escritor (com Oscar Wilde como figura paradigmática) acabou se tornando natural. Consequentemente, o próximo passo foi tentar tirar os escritores dessa naturalidade imposta, dessa presença artificial. Kohan então elogia Mordzinski, que parte de “uma premissa radical, poderosa e determinante: a única maneira de tirar o escritor de uma pose é colocá-lo em outra”. (O mesmo acontece com Szinetar, especialista em tirar selfies com grandes figuras das letras.)

“O que vemos são escritores em pose e ao mesmo tempo fora de pose”, postula Kohan. “São escritores deslocados, desacomodados, fora do lugar, perdidos. E não é essa a imagem mais verdadeira do seu modo de estar no mundo?” E arrisca que é a forma mais autêntica de existir não só para os escritores, mas também do seu ofício: “Esse nunca encaixar por completo no contexto a que, no entanto, pertence, não é uma qualidade muito singular da própria literatura?”
 
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Há também escritores que possuem outro tipo de relação com a fotografia: ficam atrás da lente e fotografam. Juan Rulfo, Allen Ginsberg e Tom Sharpe, por exemplo, tiraram fotos que mais tarde puderam ser vistas em museus e galerias de arte. Seus nomes foram recentemente acompanhados por um não menos brilhante: o de J. M. Coetzee. O vencedor do Prêmio Nobel da África do Sul vendeu seu apartamento na Cidade do Cabo em 2014 e seu novo proprietário encontrou nele, em uma caixa de papelão, uma pilha de fotografias e negativos antigos não revelados, datados de 1955 e 1956 e cujo autor era o então adolescente Coetzee (nascido em 1940).
 
As fotos foram expostas no Museu Irma Stern, na Cidade do Cabo, entre novembro e janeiro de 2018, em uma exposição intitulada Photographs from Boyhood. Retratam cenas de sua vida naqueles anos, marcados pelo apartheid, os estudos, a escola e seus ambientes familiares. São imagens que complementam e, em certo sentido, permitem ler de forma diferente os textos em que o autor descreve a África do Sul em meados do século XX, em particular o primeiro volume da sua autobiografia ficcional, precisamente intitulada Boyhood (Infância).
 
Especialmente comoventes são as fotos de Ros e Freek, dois trabalhadores da fazenda que o tio de Coetzee possuía em uma região chamada Karoo (Veja o final da post). São homens “de cor” — tal a expressão usada na África do Sul durante os tempos do apartheid — por quem o escritor sentia grande apreço e que descreve com admiração na Infância. Muitas das fotos são do dia em que os diaristas, acompanhando a família de Coetzee em uma excursão, descobriram o mar. Um episódio que, no entanto, não está descrito no romance.
 
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Como devem ser lidos esses textos icônicos que são as fotos? Como as fotos tiradas pelos escritores complementam todas as suas outras imagens, aquelas que eles construíram laboriosamente palavra por palavra, frase por frase, página por página? São “apenas de caráter ilustrativo”, como a publicidade costuma deixar claro para que não sejam posteriormente acusadas ​​de serem enganosas, ou modificam de alguma forma a leitura, a interpretação de textos do referido autor?
 
Há mais perguntas, que se desdobram no futuro. “Agora todo mundo é fotógrafo e em cada casa há três ou quatro câmeras: isso pode ser interessante a longo prazo”, disse Eugeni Forcano em 2012, após receber o Prêmio Nacional de Fotografia na Espanha. Ele tinha então 86 anos e nunca havia trabalhado com uma câmera digital. “Não descubro nada de novo — acrescentava — se digo que a história se escreve hoje com imagens. O fotógrafo é o notário da vida”. Se a história se escreve em imagens, qual é o lugar de quem escreve? Como o fato de carregarmos uma câmera no bolso o tempo todo afetará a escrita?
 
Recentemente, alguém refletiu sobre o número de fotos que nós que somos adultos hoje temos de nossa própria infância. Ou seja, fotos em que podemos nos ver quando crianças. Em geral, para a maioria das pessoas, são algumas dezenas. Algumas lembranças de nossa infância estão ancoradas nessas fotos. Se elas não existissem, é provável que alguns dos momentos que retratam já não estivessem na nossa memória. Se houvesse outras fotos, guardaríamos a memória de episódios que, em vez disso, esquecemos.
 
Cabe também perguntar, então, quais serão as memórias de infância daqueles que hoje são crianças ou adolescentes, que quando forem adultos terão centenas ou milhares de fotos, e também vídeos, de seus primeiros anos. Fotos e vídeos que, além disso, terão circulado pelas redes sociais desde o primeiro momento, desde antes do nascimento (na forma de ultrassons). Quase vidas públicas, cada uma delas um Show de Truman em miniatura. Como essas centenas ou milhares de fotos vão articular sua memória? Como eles moldarão a imagem que terão de sua própria infância? Como o Coetzee do futuro escreverá sua Infância?
 
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Eugeni Forcano usou uma câmera Rolleiflex top viewfinder a vida toda (como as que Vivian Maier também usava para suas melhores fotografias). Para fotografar com essa câmera, o fotógrafo deve colocá-la na altura da cintura e do abdômen e observá-la de cima. Isso significa que muitas vezes as pessoas não percebem que estão sendo fotografadas e, por isso, as imagens ganham espontaneidade. De alguma forma, o objetivo do narrador é o mesmo: estar lá, mas passar despercebido. Ser uma testemunha privilegiada, para depois poder reconstruir fielmente a imagem ou cena, mas sem a alterar com a sua presença. Um pouco nesse sentido, os escritores também devem estar fora do lugar, deslocados, como pedia Martin Kohan. Estar para não estar. Estar de outra forma. Uma qualidade muito singular da própria literatura.
 
Em uma das poucas entrevistas que o recluso Coetzee deu, ele foi questionado sobre as influências literárias de No coração do país, seu segundo romance, publicado em 1977. “Há, acho, uma influência mais básica: o cinema e a fotografia”, respondeu. Quem sabe quanto de seu aprendizado como escritor aconteceu naqueles dias da década de 1950, quando fotografava.
 
Escritores do futuro, acostumados a se ver milhares de vezes em vídeos e fotos, provavelmente não ficarão desconfortáveis ​​quando uma câmera se aproximar deles. Posar será o mais natural: passarão décadas ensaiando sorrisos para selfies e selecionando seus melhores retratos para o Facebook ou Instagram ou o que for usado no futuro. Espero que eles não percam, sim, a capacidade de se sentirem deslocados, desacomodados, um pouco fora de contexto. Ligeiramente fora de foco, como Robert Capa intitulou seu livro, um tipo que sabia o que estava fazendo quando tirava fotos.



* Este texto é a tradução livre de “Los escritores y sus fotos”, publicado aqui, em Letras Libres.

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