A ilha de Bergman, de Mia Hansen-Løve

Por Pedro Fernandes



Não é mais uma novidade o cinema buscar nas suas próprias referências os materiais de sua composição. Um procedimento que resulta tão antigo como a história dessa arte, no entanto, se fez uma recorrência entre as produções no entre-séculos XX e XXI. Como em todo caso, nem sempre isso é qualidade, principalmente, quando o cineasta decide se aproximar de obras idiossincráticas, que participam na constituição do cânone cinematográfico. Nesses casos, é recorrente se cair na homenagem reiterativa como o aluno que ao invés de acrescentar ao aprendizado oferecido pelo mestre apenas repete seus procedimentos.
 
Felizmente, nada disso acontece com A ilha de Bergman, por muito que se sublinhe em várias passagens da narrativa, certo culto que o diretor sueco inspira na cinefilia. Nem é possível fixar o filme de Mia Hansen-Løve como uma pura homenagem à Ingmar Bergman, porque sua qualidade, nesse território, é uma celebração a atividade criativa, e nesta, o cinema. Isto é, Bergman é também um elemento a partir do qual é possível extrair outras considerações expandindo-se para questões mais universais sem que, para isso, seja preciso se desfazer do lugar cativo do cineasta e da sua obra para a história do cinema.
 
A matéria de A ilha de Bergman é mesma que deu origem a Cenas de um casamento. Encontramos um casal aparentemente bem-realizado, incluindo nos interesses de trabalho, que, colocado em xeque se descobrirá mais produto das conveniências. Hansen-Løve altera os motivos. Afetados pela atmosfera de Fårö — a ilha onde Ingmar Bergman passou boa parte da sua vida desde o início dos anos 1960 e onde gravou muitos de seus principais filmes, incluindo o próprio Cenas de um casamento, cenário no qual a cineasta francesa localiza a narrativa do seu filme — e pelas histórias que descobrem sobre a vida familiar do diretor sueco, Tony e Chris colocam em pauta vários nós que arrastam o casamento para o centro da questão obrigando os dois a certo exame dos convívios e como a vida doméstica impacta distintamente a atividade criativa de cada um.
 
Ao casal amigo de Cenas de um casamento, a narrativa de Hansen-Løve acrescenta além desse elemento, um outro. Ou talvez seja este o correspondente ideal do objeto de turbulência no filme ora em observação. É a ocasião de uma nova referência bergmaniana. Recolhido em Fårö para uma imersão na vida e obra de Bergman, o casal se dedica a continuar seus projetos de escrita. Chris, apesar de avançada na escrita do seu roteiro, encontra-se atormentada pelo dilema de como destrinçar o destino de suas personagens num imbróglio amoroso com traços colhidos das circunstâncias pessoais e, outra vez, do motivo presente em Cenas… Quer dizer, a narrativa de A ilha de Bergman multiplica, como se uma sala de espelhos, um aspecto da filmografia do diretor sueco e oferece a cada uma das irradiações destinos próprios.
 
Mas, é o casal projetado na ficção de Chris, o casal amigo ausente em A ilha de Bergman; o elemento perturbador, por sua vez, é uma projeção de consciência que logo nos remete para filmes como Persona. Por meio dele, a protagonista é capaz de distinguir as artimanhas da memória sempre capaz de transformar qualquer passado amargo numa fileira de doces ilusões quase sempre empurrando o indivíduo ora para a angústia em relação ao seu presente ou para a atitude de experimentar outra vez o vivido e outra vez — com gosto mais amargo — cair nos braços da decepção. Pode parecer um tanto clichê, pela repetição de uma ideia, mas enquanto uma ideia não é feita comum, a própria natureza do clichê não está solidificada, mas a recorrência da cineasta é na ideia de que a ficção é possível oferecer a experiência capaz de compreendermos nosso dilema com a realidade. Não é de resolução que A ilha de Bergman fala, afinal, nenhuma das duas personagens estão aqui para um acerto de contas e tampouco a vida é feita de uma apenas uma ilusão. Importa a maneira como a narrativa joga com a intersecção de campos do vivido e do imaginado, ou se quisermos, da realidade e da ficção.
 
Como a ilha de Fårö, Bergman é onipresente no filme. As referências a outras de suas obras além das citadas até agora estão em toda parte: no uso da câmera, na fotografia, na captura do tempo, nos dilemas psicológicos que afetam sua protagonista, ou nos traços biográficos recuperados diversamente ao longo da narrativa, seja por meio de diálogos críticos entre o casal, deste com habitantes da ilha, seja nos passeios turísticos para cinéfilos que logo Chris abandona para cumpri-los à maneira antiga do turista errante, seja ainda no silêncio dos que desconhecem propriamente quem foi Bergman ou na expressão dos que o odeiam. Mas, a medida certa, transmitida pela naturalidade como essas referências funcionam no texto de Mia Hansen-Løve ou na maneira como os diálogos são desenvolvidos, contribuem para que tudo não caia como pura repetição técnica ou artificialismo que coloque em xeque o funcionamento da narrativa, sua qualidade ficcional — e não documental — de A ilha de Bergman.  
 
Mas, essa delicadeza de tratamento também se nota noutros aspectos do filme. O tema da criação, por exemplo, o que se impõe como o princípio de funcionamento de A ilha de Bergman, não deixa de colocar em pauta as desigualdades que assomam homens e mulheres e tolhem ou por vezes restringem nessas uma igualdade com aqueles. Isso fica marcado em dois momentos do filme: quando a prolífica obra de Bergman é examinada à luz de uma igualmente prolífica prole — ele dirigiu mais de cinquenta filmes, casou-se cinco vezes e foi pai de nove filhos; por extensão a isso, quando Chris se vê tomada de saudades da filha, denotando que as implicações biológicas da maternidade constituem marcas na vida profissional das mulheres. Mas, acertadamente, Hansen-Løve não converte isso num simples jogo determinista causa-consequência como se lê com certa frequência nas ditas obras engajadas, tampouco coloca isso como um aspecto que sozinho justifique o dilema da crise de criação, nem mesmo que isso se sobreponha o ato criativo.
 
Da mesma maneira, não converte a crise da criação num acontecimento trágico ou em algo que se resolva pelos afluentes de uma atmosfera criativa. Nos dois casos, pode-se mesmo perceber que a protagonista de A ilha de Bergman começa a descobrir, por ela mesma, uma resposta mais consistente que as oferecidas pelo mundo comum: que todas as pessoas possuem tempos distintos de concepção e de criação, não nascemos para repetir ou ser nossos gênios e, no tempo corrente, a determinante biológica é já racionalmente administrada o que não nos permite estabelecer os mesmos fatores vigentes no tempo de Bergman; que a criação independe da inspiração e de fórmulas mágicas, como a condição, o lugar ou os materiais ideais para sua realização.
 
Restam ainda outras qualidades neste filme de Hansen-Løve. A referida fotografia ajudada pela luz irretocável de Fårö, o tempo correto para os desvios na narrativa que sem eles o filme uma monotonia intragável e a trilha sonora constituem um todo sob medida e um desses objetos de afeto que ainda nos causam gosto de acompanhar um bom filme.

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