Hilda Furacão, a Cinderela boêmia

Por Guilherme de Paula Domingos

Roberto Drummond. Foto: Nelson Aranha


Roberto Drummond nasceu em Ferros, em 1933, e é um dos escritores mais importantes da literatura de Minas Gerais. Venceu o prêmio Jabuti como autor revelação em 1975 com a reedição do livro de contos A morte de D. J. em Paris.
 
Em 1991 publicou Hilda Furacão e sete anos depois a obra foi adaptada para uma minissérie da TV Globo escrita por Glória Perez e dirigida por Wolf Maia. Ele sempre soube que, apesar do livro de contos que rendeu o Jabuti, foi este romance que se destacou como sua obra-prima e inaugurou um novo patamar de exigência literária, a ponto de ele declarar: “Sou um eterno refém de Hilda Furacão”.
 
A história se inicia e termina em um primeiro de abril. Esse detalhe já denuncia o projeto de Roberto Drummond, edificado por sua mente ficcionista com bastante cuidado. Uma série de personagens reais se misturam a personagens fictícios, assim como locais inventados convivem com locais que existem até hoje na cidade de Belo Horizonte. Quem se propuser a fazer um roteiro pelos locais referenciados no livro, reconhecerá passagens célebres da história da cidade. O Café Palhares, por exemplo, ainda serve o KAOL, citado pelo narrador.
 
Hilda Furacão é mais conhecida por sua adaptação do que por seu livro de origem. E a personagem ficou eternizada pela atriz Ana Paula Arósio.
 
No romance, a narrativa se passa na década de 1960 e conta sobre Hilda, a Garota do Maiô Dourado, que encantava os frequentadores da alta sociedade do Minas Tênis Clube quando de supetão decide se mudar para o Maravilhoso Hotel para viver como prostituta no quarto 304. Nasce então a famosa Hilda Furacão. A sua história marca o destino de três amigos da cidade de Santana dos Ferros que se mudam para Belo Horizonte — os três mosqueteiros. São eles: o próprio narrador; Aramel, o Belo, que sonha em ser um galã de Hollywood; e o frade Malthus, que almeja ser santo.

Ana Paula Arósio (Hilda) e Rodrigo Santoro (Malthus) em seriado a partir do romance de Roberto Drummond. 


 
A zona boêmia, o baixo centro de Belo Horizonte, passa a incomodar o conservadorismo da cidade mineira, que vê seus maridos deixarem suas mulheres para cederem aos “feitiços” de Hilda. Ao passo que as senhoras revoltadas criam um movimento de luta contra a “vadiagem” da noite belo-horizontina, os padres criam seu movimento de expurgo da vida boêmia. E esses dois movimentos se unem para a criação do projeto Cidade das Camélias, que faria uma higienização do baixo centro, mandando os prostíbulos para outro local afastado da vista pudica das esposas e dos padres.
 
Há a releitura de um conto de fadas de Charles Perrault, “Cinderela”. Hilda perde o sapato, que é encontrado por Malthus. Ela cria um concurso para a devolução da peça perdida. Nota-se que todas essas histórias servirão de material para falar do avanço dos militares no Brasil, que como bem sabemos, protagonizaram um golpe de Estado em 1964. As histórias do protagonista, que era comunista, vão sendo costuradas para dar conta de sua luta junto ao partido.
 
Assim, as memórias do autor se fundem e se confundem com as memórias do narrador-protagonista. O talento de Drummond transparece quando ele retrabalha os gêneros literários para a criação da obra. Sem dúvida alguma se trata de um romance. Mas nas memórias da personagem, principalmente quando fala da família, por pouco acreditamos que é tudo factual, posto que vira quase um romance epistolar direcionado à tia. Às vezes, parece que estamos lendo crônicas, o que cria uma atmosfera de aproximação do leitor com a obra.
 
Certamente é um livro que trará memórias afetivas para quem conhece a cidade. E para quem não conhece, certamente ficará curioso com as histórias e vai querer pesquisar os lugares e as personagens que emergem das suas páginas.
 
Se você leu até aqui, deixo algumas informações extras como uma modesta recompensa:
 
1. Hilda Furacão realmente existiu. Hilda Maia Valentim. Ela se casou com Paulo Valentim, jogador de futebol. E não, não houve uma paixão avassaladora com um frade. O casal se muda para a Argentina e ganha dinheiro, contudo o marido era alcoólatra e viciado em jogo. Mais tarde, ele morre, assim como alguns anos depois o filho do casal. Hilda passa a morar em um asilo, já sem posses, onde morre quase esquecida em 2014.
 
2. A praça Diogo de Vasconcelos (popularmente denominada Praça da Savassi), em Belo Horizonte, é o local onde há uma estátua de Roberto Drummond e da conterrânea mineira Henriqueta Lisboa, ambas em tamanho natural.
 
3. Malthus é uma personagem inspirada no frei Betto, grande amigo do escritor.
 
4. Em 2021, a travesti Cintura Fina foi reconhecida como cidadã honorária de Belo Horizonte. Ela faleceu em 1995, aos 62 anos.
 
5. Roberto Drummond levava anos para escrever seus livros, porém Hilda Furacão foi escrito em apenas 64 dias.


______
Hilda Furacão
Roberto Drummond
Geração Editorial, 2024
296 p.

Comentários

Camila Alves disse…
Que legal!
Júnia disse…
Ambas colunas ficaram ótimas, não havia comentado anteriormente. Deixo meu registro agora, excelente.
Luís Fagner disse…
Informações facilmente - e melhor - se lermos o verbete na Wikipédia.

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #581

Boletim Letras 360º #575

A bíblia, Péter Nádas

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

Boletim Letras 360º #576