O contexto histórico global da prosa romanesca de William Faulkner

Por José Gregorio Lobo




A obra literária de qualquer autor sempre está entre um determinado contexto histórico social, independentemente dos acontecimentos dos quais se utiliza do contexto histórico de fora do texto como referente temático. No caso particular de William Faulkner – e isso é precisamente o motivo deste texto – destaca-se a utilização do contexto histórico-social como referente temático e quase como recurso narrativo.

Nosso propósito nesta oportunidade é o de mencionar e enumerar os principais eventos históricos que serviram de marco referencial ao grande escritor estadunidense, por entender – claramente – que são para todos os seus contemporâneos, e com o esclarecimento de que aqueles escritores, coetâneos de Faulkner, que também tomaram a história como fonte temática, naturalmente irão plasmar os mesmos eventos de maneira totalmente diferente, de acordo com suas características pessoais e seus interesses particulares.

Faulkner, como herdeiro de um passado histórico caracterizada por grandes acontecimentos de ressonância universal, empreende a tarefa de resgatar esses fatos conferindo-lhes uma dimensão literária. Há nele um sentimento de profunda identificação com o passado, com a tradição do Sul, mas sobretudo existe nele uma imensa admiração pela verdade histórica, ao ponto de – no ciclo de suas narrativas de Yoknapatwpha – criar um microcosmo para relatar de alguma maneira sua “verdade histórica” dentro dos muros da ficção.

Na prosa romanesca faulkneriana estão presentes duas realidades históricas que coexistem harmonicamente: a) a que escapa ao tempo físico no qual o escritor viveu e b) a que ele pessoalmente precisou enfrentar durante sua vida, ao lado naturalmente, de seus contemporâneos. Vale dizer, um passado carregado de história ao qual Faulkner tem acesso através dos livros e da tradição oral, e um presente muito vivo em que o escritor se vê envolvido diretamente como protagonista dos acontecimentos, aportando assim sua cota de responsabilidade para com a história.

No primeiro caso, as raízes dessa realidade história estão fundidas na fonte de toda a civilização ocidental, isto é, no helenismo oriental e no cristianismo, Grécia e Roma. Com todas as ramificações posteriores encravadas nas diferentes culturas europeias, das quais os ingleses eram de alguma maneira devedores antes de iniciar sua aventura pelo território da América do Norte.

Mas, quem habitava esse novo território? Calcula-se que os aborígenes norte-americanos no total nunca passaram de 850 mil, número exíguo comparado com o império incaico que chegou a albergar aproximadamente 12 milhões de habitantes, e num espaço incomparavelmente menor. A isso se deve agregar a forma de organização social que privava entre os aborígenes nortenhos, que se caracterizavam por sua natureza especialmente nômade, que os mantinha numa mobilidade permanente, o que também poderia explicar levando em conta a crueza climática durante alguns períodos do ano. No entanto, os primeiros habitantes da América do Norte desfrutavam de uma natureza por demais pródiga: do rio Mississipi ao Atlântico existiam bosques ilimitados que serviam de morada a numerosas aves de caça e nos rios cristalinos que cruzavam a região em todas as direções, a pesca era infinita.

Segundo o historiador Cárdenas Nanneti os conquistadores espanhóis da América do Norte são figuras relativamente obscuras na história: sensivelmente porque ali não encontraram impérios que conquistar, apenas nos territórios que hoje são ocupados pelos estados do Arizona e Novo México, composto principalmente por planaltos semidesérticos, floresciam povoados sedentários e agrícolas que desde os tempos mais antigos cultivavam milho procedente de territórios astecas.



Porque Faulkner é nativo do Mississipi, estado sulista por excelência, vejamos quais eram as tribos indígenas que habitavam essas aldeias. Os europeus encontraram ao leste do Mississipi três grandes grupos de indígenas subdivididos em diversas tribos. Os algonquino, que eram os mais numerosos, viviam ao norte de Kentucky e na maior parte do Canadá (ottawas, chippewas, delawares, fox, massachusetts, miamis, narrangansetts, potwatomis, sanks, shawnees,wappanoags, oneidas, onondagas, senecas etc.) e nas planícies que se encontram ao oeste de Mississipi viviam os dakotas, conhecidos também como sioux, no sudoeste (Arizona e Novo México), os zunis, os hopis, os mojaves, os yumas etc.

Ao chegar à costa da América do Norte os ingleses trazem consigo um legado histórico, mas também uma cultura que tratam de impor pela força sobre aqueles aborígenes que não entendiam absolutamente nada quanto ao conceito de propriedade, ou de compra-e-venda, nem muito menos de moeda como valor de troca. Esta cultura europeia ao ser transplantada ao novo território adquire modalidades muito distintas das originais, até chegar o momento em que se deve considerar tipicamente estadunidense. Houve um instante no qual esse sentimento dotado de características próprias e peculiaridades autenticamente locais, e no qual se expressa já um espírito com razies numa nova geografia que nascia uma identidade estadunidense. A partir desse momento se iniciaria o longo processo independentista para desatar os laços políticos e econômicos com a mãe-pátria Inglaterra.

No segundo caso, são as mesmas circunstâncias vitais, as vivências cotidianos do escritor, sua maneira de interagir com sua realidade histórico-social, o que o faz adotar uma atitude e um comportamento que vão caracterizá-lo com um cidadão estadunidense, como homem e sobretudo como escritor. Durante sua existência se produziram  dois dos acontecimentos históricos mais importantes deste século: a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, as quais, sem dúvida, deixaram cicatrizes insuperáveis em todos aqueles que viveram-na. Que além de tudo deixaram uma cara lição à humanidade, digna de ser levada em conta no presente e no futuro dos povos.

Esses dois acontecimentos incidiram não somente na literatura dos contemporâneos de Faulkner, também em suas motivações, desde o ponto de vista temático ressonante nas suas obras e enquanto sua visão de mundo de um modo geral

Faulkner faz confluir de uma maneira magistral a torrente histórica do passado no seu presente para obter, no final, uma obra que se projeta para o futuro. Dizíamos que ele havia sido herdeiro de um passado histórico muito rico em acontecimentos de caráter universal, pois bem, essa bagagem sempre esteve, como os rios subterrâneos, presentes no momento culminante de sua criação artística.

Mas Faulkner também foi herdeiro de um passado histórico literário sumamente respeitável. Já prestigiavam a literatura estadunidense a partir de suas individualidades como a primeira poeta reconhecida, Anne Bradstreet, seu primeiro romancista nascido em 1779, Charles Brockden Brown, passando pelas grandes figuras dos séculos XVIII e XIX: Washington Irving, James Fenimore Cooper, Benjamin Franklin, Jefferson, Hawthorne, Edgar Allan Poe, Whitman, Herman Melville, Emerson, Thoreau, Henry James etc. até chegar às figuras principais que compartilharam no mesmo universo literário com Faulkner, sua contemporaneidade literária, a qual nos referimos.

Agora, são os acontecimentos históricos que devemos enumerar nesta oportunidade, para efeitos de aprofundar melhor os detalhes e referências. Assim, não a ótica metodológica do historiador, mas com a inquietude de quem se aproxima da história para examiná-la como fonte temática, nos permitimos assinalar os principais acontecimentos da América do Norte desde sua conquista ao momento em que vive e escreve Faulkner.

O primeiro lugar devemos anotar que os processos de conquista e colonização do continente se produziram tardiamente em relação à América Central e a América do Sul. No despontar do século XVII não existia ainda na América uma só colônia britânica; por sua vez na América espanhola já havia se passado um século de vida organizada e já havia sido construído grandes cidades, com seus respectivos governos e até se poderia falar de grandes e prestigiadas universidades. A América do Norte distava de tal avanço civilizatório devido à circunstância que já anotamos acima: o caráter nômade e desorganizado de seus relativamente poucos aborígenes dispersos através de um imenso continente.

Se diz que na história da América do Norte o século XVI é espanhol, apesar de os espanhóis não realizarem nenhuma conquista ali por não haver impérios a conquistar, como aconteceu aos impérios organizados dos astecas e dos incas ao sul do rio Bravo. Mas, o século XVII é britânico. Depois do descobrimento vem a ocupação, a qual não corresponde aos modelos espanhóis. Tudo isso em parte devido às “facilidades” permitidas pelos espanhóis aos ingleses, especialmente depois da derrota da Armada Invencível em 1588, o que veio a ser na prática uma verdadeira transmissão de mando por parte da Espanha, e que a Inglaterra vai exercer, de uma maneira ou de outra, até nossos dias (recordemos do último conflito finalizado, a Guerra das Malvinas). Espanha deixou de ser definitivamente um obstáculo para os interesses da Inglaterra na América. A tenaz iniciativa de Sir. Walter Raleigh deve aos Estados Unidos sua modesta fundação que se iniciou com a colônia de Virginia, cujo nome, precisamente, é uma terna homenagem do conquistador à sua amada.

Logo vieram outras colônias até a treze; entre outras: Pensilvânia, Nova Hampshire, Rhode Island, Connecticut, Nova Jersey, Delaware, Maryland etc., as quais, unidas, irão mais tarde optar por sua independência da Coroa Britânica. Em 1700, a população das colônias já alcançavam algo em torno de 275 mil habitantes e apenas cinquenta anos depois passava de 1,2 milhões com maiores concentrações humanas nas regiões da Virginia, Massachussetts e Pensilvânia.

Segundo o historiador colombiano Jorge Cárdenas Nanneti, na primeira metade do século XVIII culmina o processo de “americanização” iniciado desde aquele momento em que os primeiros imigrantes fincaram pé em Plymouth e em Jamestown; porque à medida que o homem europeu foi dominando o ambiente físico do extenso território – abrindo os bosques, construindo povoados e cidades, trilhas e estradas, estabelecendo fábricas e indústrias, numa palavra, ampliando toda uma estrutura básica para o desenvolvimento posterior – o meio ambiente operava também sobre o seu espírito, sutil mas definitivamente. E neste longo processos de recíproca influência a transformação do elemento humano foi mais profunda que a da terra. Para meados do século XVIII é quase um milhão e meio de ingleses, irlandeses, alemães e suecos que povoavam as treze colônias originais e já não eram nem suecos, nem alemães, nem irlandeses e sequer ingleses, eram estadunidenses, ou melhor, norte-americanos.

Dois fatores importantes fazem parte da vida colonial norte-americana: um deles é a escravidão e o outro a religião cristã protestante. A escravidão, julgada pelo critério e a ótica do homem contemporâneo foi para a América do Norte uma verdadeira desgraça. Enquanto a religião, especialmente o credo puritano, foi, de nosso modesto ponto de vista, um motor que serviu de motivação primária para o trabalho criativo.     

No dia 6 de julho de 1775 se declarou formalmente a guerra que iria culminar satisfatoriamente com a Independência dos Estados Unidos: de imediato, pelo menos 100 mil do império abandonaram o território de maneira voluntária, outros foram derrotados; de igual maneira uns 60 mil buscaram refúgio nas províncias marítimas do Canadá e milhares fugiram para as Antilhas ou mesmo para a Inglaterra. Quase um ano depois, em 4 de julho de 1776, depois de ganhar inumeráveis batalhes na guerra contra a coroa, o Congresso declarou solenemente a Independência dos agora Estados Unidos da América do Norte.

Terminada a guerra de independência no ano de 1783, a nova nação começou um processo de expansão, tomando lentamente todo o território ao Oeste. Apareceram, então, os famosos pioneiros abrindo passo forçado na encarniçada luta contra os indígenas que viviam nestas regiões. Ao mesmo tempo se iniciou um processo de tirania entre as colônias do Norte, antiescravistas e as do Sul, eminentemente escravista – luta que terminou desencadeando a Guerra Civil  onde saíram vitoriosos os estados do Norte, em 1865.

Entre as consequências mais importantes da Guerra Civil, poderíamos destacar, entre outras, as seguintes: a escravidão ficou definitivamente aniquilada como instituição; se conquistou a unificação e integração absoluta do país, o que permitiu o grande auge de seu desenvolvimento econômico; acelerou-se a conquista do Oeste; incrementou-se o processo de industrial do país; a nação se cobria de estradas de ferros e a expansão do capital foi de tal magnitude que uma parte precisou sair do país para ser transformado em outras latitudes. No fim do século se produziram graves enfrentamentos entre trabalhadores das fábricas pedindo melhores condições salariais, e os representantes da ordem. Estes, naturalmente, defendiam os interesses dos grandes trusts.

Em 1816 foi eleito Jacobo Monroe para a presidência dos EEUU. Foi ele um dos presidentes mais audaciosos e claros quanto à política externa; nos países latino-americanos sempre o recordará por haver promovido a política “protecionista” a qual segue a doutrina que reza “América para os americanos”, apesar de que em distintas oportunidades tenha se deixado de levar a regra em prática, como o confronto bélico entre França e México conhecido como “guerra dos pastéis” ou como no caso da Guerra das Malvinas, entre Argentina e Inglaterra.

Em 26 de fevereiro de 1836, entrou na cidade texana de St Antonio o exército mexicano a mando do general Santa Anta matando 183 soldados estadunidenses num lugar chamado “O Alamo”. Este acontecimento foi suficientemente grave para que se produzisse uma ação retaliativa de funestas consequências para a integridade política do México, cujas fronteiras tiveram de ser mudadas de onde era ao sul do rio Bravo. Isso significava que o país latino ficava na realidade sem os territórios que hoje conformam os estados da Califórnia, Texas, Novo México, Nova Utah, Arizona e partes do Colorado. Com esta guerra, o México saiu como se vê com a pior parte, além do agravante de seu orgulho nacional haver sofrido uma ferida tão profunda que até agora não se pode recuperar.

Próximo de 1850 já estava em pleno apogeu o chamado Gold Rush (A febre do ouro) no estado da Califórnia, fenômeno social que sugeriu, devido às suas incalculáveis consequências, a muitos homens de negócios, a construção de um canal interoceânico. Mais tarde se construiria o Canal do Panamá.




Dois anos depois dessas especulações apareceu na literatura estadunidense um livro que segundo Lincoln, “produziu a Guerra Civil” – trata-se de A cabana do Pai Tomás, romance escrito por Harriet Beecher Stowe. No primeiro ano, a obra vendeu 300 mil exemplares e logo foi traduzida para 23 idiomas. Este livro, de forte tom melodramático acerca das crueldades sofridas pelos negros, foi publicado num momento de intensa tensão emocional e produziu uma reação de igual maneira, sobretudo nos estados antiescravagistas. Dez anos mais tarde a chamada guerra entre irmãos crescia incontrolavelmente.

Em finais do século XIX os acontecimentos desastrosos de mais uma guerra civil eram já só um má lembrança na memória dos estadunidenses, parte de um passado que todos desejavam esquecer. Apesar de tudo, depois da guerra começaram a aparecer algumas mudanças positivas. Por exemplo, para o Norte, o ressurgimento do Sul e o desenvolvimento acelerado do Oeste, significaram o estabelecimento de um vasto mercado nacional que deu novo impulso às suas próprias indústrias. Não só cresciam as já existentes como se criavam novas que iam servir de suporte às antigas, graças ao gênio inventivo estadunidense que no último quarto de século colocou o país no topo dos países industrializados.

Sem dúvida, em finais do século XIX os problemas do desenvolvimento industrial não se fizeram esperar nos Estados Unidos – já nessa época o país estava totalmente consolidado do ponto de sua conformação geográfica, com seus 48 estados continentais que davam a imagem de uma potência de primeira linha no contexto mundial. Os trabalhadores então começaram a exigir melhorias salariais e melhores condições de trabalho quanto a horários, segurança de trabalho, benefícios etc. Chegaram a se produzir sérios enfrentamentos entre os trabalhadores e a polícia nas principais cidades do Norte industrializado, precisamente por aumentos salariais e melhores condições de vida nas fábricas. Mas o sangue não chegou ao rio e as melhoras em lucros e salários, assim como a otimização das condições de vida em geral, foram amplamente satisfatórias por parte dos patrões.

Durante a primeira década do século XX, nos Estados Unidos não se produziram acontecimentos de transcendência que valha a pena citar nesta ocasião. Só a partir do ano de 1914 quando se abriu a grande escala da atividade bélica do país com o início da Primeira Guerra Mundial e quando os tambores da guerra adormeceram em escala universal para logo voltar a acordar em 1939, quando se inicia a Segunda Guerra Mundial. Mas antes, em 1929, havia acontecido a Grande Depressão, que significou a derrocada econômica, não só para aos EEUU, mas também para o restante do mundo capitalista que se erguia vertiginosamente.

Os acontecimentos das duas grandes guerras e o da Grande Depressão, assim como as memórias de um passado violento, pertencem ao entorno vivencial de William Faulkner, cuja obra literária não terá deixado de refletir. Trata-se agora da história vivida e a qual influencia determinantemente o que o romancista escreveu. A Faulkner, particularmente, chama-lhe a atenção os feitos dos conflitos do passado, sobretudo os da Guerra Civil. Para ele, é secundário os acontecimentos das duas grandes guerras como fonte temática para seus romances, porque está interessado nas forças de formação de país – o que não foi assim para outros de seus contemporâneos, tais como Hemingway, Fitzgerald, O’Neill etc. Todas as implicações desse impasse no sul profundo serão sentidas no ciclo de Yoknapatwpha, onde para Faulkner se mostra uma manifestação em reviver literariamente tal impasse.  

* Este texto é a tradução livre do capítulo "Contexto histórico global de novelística de Faulkner", do livro La contemporaneidad de Faulkner.

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