Adalgisa Nery, a musa de várias faces

Por Ramon Mello




“Adalgisa e Adaljosa,
Parti-me para vosso amor
Que tem tantas direções
E em nenhuma se define
Mas em todas se resume.
Saberei multiplicar-me
E em cada praia tereis
Dois, três, quatro, sete corpos
De Adalgisa, a lisa, fria
E quente e áspera Adalgisa,
Numerosa qual Amor.” 

Nestes versos do poema “Desdobramento de Adalgisa”, publicado em Brejo das almas (1934),Carlos Drummond de Andrade cantou as faces de Adalgisa Nery, poeta, jornalista e política, morta há 30 anos, em 7 de junho de 1980. Atuando em áreas tradicionalmente masculinas, Adalgisa colecionou amores e, também, alguns desafetos, mas conquistou reconhecimento e espaço na intelectualidade brasileira. No fim da vida, Adalgisa escolheu a solidão, recolhendo-se num asilo em Jacarepaguá. 

Adalgisa Nery estreou na literatura após a morte do pintor modernista Ismael Nery (1900 - 1934), seu primeiro marido. Viúva, casou-se com o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da ditadura Vargas, Lourival Fontes, desempenhando um papel crucial nas relações entre o Estado Novo e os intelectuais. Em 1954, após o suicídio do presidente, já separada de Lourival, Adalgisa estreou no jornalismo, fazendo carreira no jornal de Samuel Wainer, Última hora, ao assinar a lendária coluna “Retrato sem retoque”, espaço em que abordava, diariamente, com tom nacionalista, assuntos de política e economia, atacando os desafetos políticos.

Tendo a elegância como marca, andando sempre com cabelos e unhas impecáveis, Adalgisa atuou no campo intelectual, transgredindo na prática o papel da mulher, desde os anos 1930. A poeta deixou um legado para as mulheres que hoje ocupam lugar de destaque, principalmente no campo jornalístico. 

“Ela escrevia com muita personalidade e voz própria. O exercício do jornalismo diário com textos políticos foi o que elegeu a deputada Adalgisa Nery, uma mulher sedutora e, ao mesmo, tempo muito dura”, afirma a escritora e jornalista Ana Arruda Callado, autora da biografia Adalgisa Nery, muito amada e muito só (Perfis do Rio, 1999), o único livro sobre a trajetória da poeta, que está esgotado. 

Em 1960, sua carreira jornalística a projetou na política. Cercada de inimizades, como o então governador Carlos Lacerda, e herdeira política de Getúlio Vargas, Adalgisa foi deputada, pelo PTB, ao longo de três mandados, até ser cassada em 1969 pelo regime militar – o que a motivou a abandonar tudo: família, amigos e literatura.

Contemporânea das escritoras Dinah Silveira de Queiroz e Eneida de Moraes, Adalgisa Nery foi uma mulher de personalidade forte, contraditória, que buscou inspiração em outras mulheres modernas, como a escritora feminista francesa George Sand – de quem traduziu, do inglês, a biografia. Ela também estabeleceu uma relação de amizade com Frida Kahlo, que lhe dedicou uma página de seu diário. A Casa de Rui Barbosa guarda cartas trocadas com o pintor Diego Rivera, marido de Frida, por quem Adalgisa foi retratada na época em que foi embaixatriz no México. 

A poeta também foi musa de Cândido Portinari, que ilustrou muitos de seus livros. Em depoimento para a biografia escrita por Ana Arruda, a viúva do pintor, Maria Portinari, relembrou o fascínio que Adalgisa causava nos homens: “Minha filha, que impressão ela causava nos homens! E no meu marido também.” 

A mulher bonita e sedutora, muitas vezes excêntrica, com seus chapéus enormes, causava antipatia em alguns. É o que diz Raquel de Queiroz, ainda na biografia escrita por Ana Arruda Callado: “Ela não era simpática, nem educada. Mas era bonita. Muito bonita... Embora se achasse mais bonita do que era. Era pobre e ambiciosa [...] Eu não a considerava elegante; era extravagante nas roupas. [...] Ela queria ser a deusa: a deusa da poesia, a deusa da beleza...”

Autora de inúmeros livros de poesia, cujos títulos estão reunidos no volume Mundos oscilantes (1962), Adalgisa também se traduziu na prosa.  Todas as publicações foram bem recebidas pela crítica da época. No entanto, os títulos estão fora de catálogo e sem previsão para reedições. Com sorte, garimpando muito, encontra-se alguns exemplares em sebos. O esquecimento desagrada seus admiradores, como o poeta Armando Freitas Filho.

“Adalgisa era formidável, foi uma das nossas primeiras protagonistas intelectuais. Podemos dizer que ela antecedeu Cecília Meireles, em termos de representação pública. A interpretação que faço é que ela ficou marcada por uma ambiguidade. Sua produção em prosa teve uma recepção crítica mais forte do que a poética. Além do romance A imaginária, lembro do livro de poemas Ar do deserto, publicado em 1943. Sua poesia me parecia que tinha um eco com a de Augusto Frederico Schmidt. É fundamental que seus livros voltem a circular para que os leitores conheçam sua produção intelectual”, diz Armando.

“A poesia dela é marcada por um tom grandiloquente, fervoroso. Seus versos tratam do cotidiano do homem comum e também da força do cosmo. Há um movimento paradoxal em sua poesia, intenso, que une o natural ao sobrenatural, a preocupação social ao erotismo. Trata-se de uma obra irregular, sem qualquer dúvida, mas com excelentes poemas. Uma obra que deve ser republicada e sofrer uma reavaliação crítica sobretudo em relação ao contexto da literatura brasileira daquele período, com Cecília Meireles, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes, que podem revelar alguma aproximação com a poética de Adalgisa Nery”, afirma Eduardo Coelho. 

No romance mais conhecido de Adalgisa, A imaginária, a personagem Berenice narra o drama psicológico em suas passagens de vida: a família pobre; o curso primário iniciado num colégio de freiras e concluído numa escola de Botafogo; os conflitos de infância e adolescência; o casamento sem consentimento da família; a convivência triste com a família do primeiro marido; e a morte do cônjuge, aos 33 anos, vítima de tuberculose.

“Até que ponto esta Berenice apaixonada e mais tarde aterrorizada, heroína do romance que foi o maior sucesso editorial da autora, é Adalgisa Nery?”, pergunta o jornalista Paulo Silveira, amigo de Adalgisa, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som gravado em 26 de julho de 1967, questão replicada em Adalgisa Nery, muito amada e muito só, onde se lê a resposta da própria escritora: “Ali tem muita coisa de minha biografia, tem muita coisa reforçada com minha imaginação.”        

Mesmo com o passar dos anos, Adalgisa Nery, continua apaixonante, seduzindo pela biografia e pela imaginação, pela personalidade e pelas palavras.



* Uma versão deste texto foi publicado originalmente no caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo, em 19 de junho de 2010.


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