José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes


Por Pedro Fernandes



“Todos os tempos tiveram coisas boas; todos os tempos tiveram coisas más; mas como comunidade a espécie humana é um desastre. É um desastre. Então, é muito difícil dizer que todo o tempo passado foi melhor. Medo? Nada... Nada... Não... não... Não gosto nada, claro, evidentemente. E agora que, enfim, com a idade que tenho... Então, digamos, que já está claro que, que a porta de saída já está aí... Não, não tenho medo da... Medo, não. Há uma coisa de que, realmente, não gosto nada, que é quando se diz: Ah, estar vivo, morrer, e tudo isso... Para mim, a morte é... Não sei o que será depois... Ou, no momento em que estiver a morrer... como o entenderei... Mas, para mim, a morte, neste momento, é a diferença entre ter estado e já não estar. Isso é que... Isso, realmente, é o que me chateia muitíssimo...” É com este depoimento para uma emissora, que se abre o documentário José e Pilar – obra-prima, já me adianto, que põe o telespectador-leitor próximo do escritor, de sua vida pessoal, seu dia-a-dia, seu modo de trabalhar, coisas que o próprio Saramago ensaiou em vida quando, depois de se mudar para Lanzarote, esteve a escrever os seus Cadernos de Lanzarote, espécie de diário escrito em quatro volumes.

O modo como seu diretor concebeu o filme é capaz de conduzir-nos por um caudal diverso de emoções: ora se ri com o bom humor (refinado humor) de José Saramago, ora se chora, como quando o escritor é internado naquele que foi o seu pior momento de saúde, em que todos ao redor dele tiveram a sensação de que ali estava seu fim, o que não foi o caso. Saramago ainda voltaria à rotina, terminaria A viagem do elefante e ainda escreveria Caim e iniciaria a escrita de Alabardas! Alabardas!. Digo, também, antecipadamente, que este é sim um filme de uma grande riqueza poética - seja na fotografia, muito bem trabalhada dando contas dos estágios principais ou dos tons que compõem o seguimento da obra, seja trilha sonora, seja ainda no desenvolvimento do enredo.

Por falar em enredo, seu fio condutor é a escrita d’A viagem do elefante, o que faz desse filme também uma viagem, cuja protagonista é, mais que o próprio Saramago, ou senão, em mesma proporção, a sua esposa Pilar Del Rio. Ela está em todos os momentos do documentário, como tradutora do escritor para o espanhol, na organização das correspondências e da extensa agenda do Prêmio Nobel, no momento (o mais belo do filme) de sustentação ao escritor no período de sua internação. E, sobretudo, na capacidade de recuperá-lo das situações em que seu comportamento calado o faz um tanto quanto sisudo, melancólico. Não é difícil de vê-la como uma daquelas muitas mulheres que o escritor deu corda na sua obra.

Depois do depoimento, somos levados a Lanzarote e começamos numa manhã de fevereiro na arrumação da recém-construída biblioteca do escritor, a recepção de pacotes de correspondências – aos vários (alguns, sabemos depois, são livros deixados pelos leitores para que Saramago os autografe) –, ouvimos Saramago dizer, olhando em volta da biblioteca, “Tudo isso parece um sonho”, e foi mesmo, para um escritor que sem dinheiro para comprar livros fez-se leitor nas bibliotecas públicas em Lisboa.

Depois ouvimo-lo a discutir acerca do livro A viagem do elefante, o som do Windows abrindo, o escritor colocando um CD de música clássica, o seu regresso ao computador e o jogo de paciência – hobby seu –, um tapinha na bunda de Pilar... E o que se desenrola é o ritmo habitual do dia do escritor e um entrecruzamento de histórias: os depoimentos, as entrevistas, os encontro com leitores, as correrias e a tranquilidade de Lanzarote, o riso, a ironia, as viagens, muitas viagens. A rotina diária de um romancista premiado e lido mundialmente pode ser (e é) simples como a de qualquer mortal, mas há momentos (aos tantos) em que essa rotina é sufocadoramente invadida e é isso o que Miguel Gonçalves Mendes consegue reproduzir.

O resultado, além da história de amor (José e Pilar), além da história de escrita de um livro e o nascimento da ideia de outro (A viagem do elefante e Caim, pensado este na viagem para o Brasil para lançamento do primeiro), além da rotina simples e debilitante, é a história de um escritor que esteve, até o último instante de sua vida, dedicado a ser prestativo com todos, ainda que as perguntas feitas pelos jornalistas fossem as mesmas e mesmas fossem as respostas a serem dadas, ainda que os pedidos de paparicos fossem de fotografia, passassem por um autógrafo e findassem no pedido de um fã brasileiro (tinha de ser) pedindo que o escritor lhe desenhe um hipopótamo. Enfim, não podemos deixar de ver em Saramago que também foi vítima da espetacularização midiática, seja pela sua postura vivaz e polêmica, seja por essa sua capacidade de ser prestativo.

“Parem as câmeras/ Parem preciso sair/ Estou tão carregado como o céu” – canta a trilha sonora depois da extensa fila de autógrafos quando do lançamento d’A viagem no Brasil. “Ai! Vocês matam-me!”, diz Saramago ao entrar no carro, “Vocês matam-me!”, repete já ao lado de Pilar, “Na reencarnação futura eu queria ser árvore. Ali com as raízes todas bem agarradas à terra, e daqui não saio.” “Agora o José deveria está desse lado”, diz Pilar, já com o carro em movimento; “Sim, é verdade... Mas não tem problema”, é a voz de Miguel Gonçalves, “Então trocamos”, reitera Pilar. “Não, Pilar. Ele agora vira a máquina lá para o outro lado e acabou, da minha cara já está ele farto”, “Mas é tua cara em Copacabana”, retruca Pilar. E o carro para, José Saramago troca de lugar e a filmagem segue, “Tu tens uma confiança no futuro impressionante, Pilar”. “Bem vindo ao circo do espetáculo” – recupera-se a trilha sonora, para caminhar o desfecho do filme.


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