baltazar serapião e o estupro no Brasil

Por Paula Luersen

© Derek Jerman


Cento e oitenta mulheres são estupradas por dia no Brasil. Em qualquer texto sobre o assunto me parece importante alçar esse dado a uma espécie de refrão. Cento e oitenta mulheres são violentadas, coagidas, estupradas, a cada dia, somente no Brasil. Sei que os números não impactam hoje, haja visto o pouco valor conferido aos dados da pandemia do coronavírus pelas esferas de poder e pela população em geral. De qualquer modo, os números continuam a ser uma vereda importante para registrar as condições que nos rodeiam, além de assegurar a uma parte da população, que segue recolhida em casa, de que não somos delirantes em relação à angústia crescente que nos assola, em um mundo posto às avessas. Estamos, sim, cercados de muitas formas de violência e naturalizar esse fato só nos faz um tanto mais doentes. Existem, porém, outras veredas que nos levam a encarar a realidade, conduzindo do registro à reflexão, dos números às narrativas. Como o leitor bem sabe, esse lugar nem sempre fácil de enfrentar, mas altamente necessário, é a literatura.

Qual a lógica de relação com o mundo que faz com que cento e oitenta mulheres sejam estupradas por dia no Brasil? Para além de questões estruturais, que tipo de imagem, que tipo de crença e de entendimento habita o foro íntimo dos perpetradores dessa violência? A pergunta é já muito incômoda. Poderíamos tentar recorrer à lógica do patriarcado e à violência endêmica em um país tão desigual. Esses são discursos que muitos de nós já cansamos de proferir e ouvir e que, nem por isso, poderemos deixar de reafirmar. Penso, porém, em outras maneiras de colocar essa violência em termos, que talvez saibam escapar ao anestesiamento frente aos discursos já proferidos, aos números e porcentagens. Formas de dizer que tragam uma consistência outra para esse problema e ainda nos surpreendam:

“uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada, explicava o meu pai, ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus erros. também para não espalhar pela vizinhança a alma secreta da família, que há coisas do decoro da casa que se deve confinar aos nossos. Assim se fazia a minha mãe, barafustando dia a dia, mas liberta das intenções de nos educar coisas inúteis ou falsas, que fizessem de nós rapazes menos homens ou simplesmente iludidos com um mundo que só as mulheres imaginavam”.

“eram [as mulheres] instáveis, temperamentais, aflitas de coisas secretas e imaginárias, a prepararem vidas só delas sem sentido à lógica. Tinham artefatos e maneiras de parecer gente sem quererem perder tudo o que deviam perder. Eram, como sabíamos tão bem, perigosas”.

Esses são trechos de O remorso de Baltazar Serapião, livro de Valter Hugo Mãe. A obra propõe uma experiência de leitura extremamente difícil tal a crueza dos juízos que eram e ainda são expedidos sobre as mulheres. O livro traz a história da família Sarga, subjugada ao domínio de um Senhor, dono de terras e provido de grande prestígio, sustentado pelos dominados. Embora a história se passe na Idade Média, esse dado fica pouco evidente pela escolha do autor em centrar a narrativa na fala do narrador – o primogênito da família – que coloca em primeiro plano os inúmeros elementos de discursos que ainda hoje se sustentam no imaginário coletivo, atuando social e politicamente quando o assunto é o corpo, a vida e o direito das mulheres.

Ao encarar esse personagem, Valter Hugo Mãe consegue nos dar a medida da covardia que sustenta a fala e as ações dos membros da família retratada. Mais do que isso, nos mostra como a covardia transpassa todas as searas da vida comum desses indivíduos, tornando-se sua maneira de existir no mundo. O temor, o acanhamento e a falta de coragem, que caracterizam uma existência covarde, acabam levando a outra de suas expressões: a violência contra o mais fraco. Me refiro aqui às crianças. Nessa seara, chegamos ao quadro mais terrível não só de um livro calcado nas crenças da Idade Média, mas da nossa realidade atual: revelou-se, na semana passada, o dado de que cinco crianças de dez a catorze anos são internadas por dia no SUS, em média, em decorrência de abortos. Crianças de dez a catorze anos, sublinho. Esse é o número de crianças que conseguem chegar a postos de atendimento do SUS e sabemos que ele é apenas uma parcela da realidade ainda mais desoladora. Voltemos ao livro:

“a brunilde tinha onze anos quando foi para a casa [do Senhor]. diziam que lhe vinham as mamas tardava nada, preparava-se para ser leiteira. as mulheres quando se tornavam leiteiras podiam aceder a maior discernimento e os trabalhos a que se destinavam deviam ser aproveitados de imediato”.

Embora a leitura dessas linhas nos soe ultrajante, ela expõe com feroz assertividade a condição de desumanização a que esses corpos, ainda imberbes, foram e são sujeitados. O livro retorna ao momento em que foram geradas muitas das máximas sobre os corpos das mulheres, passadas de geração em geração, inundando de crenças os conhecimentos populares a partir do poder da Igreja. O autor retorna ao ideário que associou curandeiras, parteiras e mulheres comuns à figura da bruxa. E é doloroso pensar que muitos dos ditames que figuram no livro ainda atuem, na nossa realidade, como pano de fundo de nossas mazelas sociais. Estamos fartos da abordagem desse problema a partir da ótica do particular. Se pensássemos tal fenômeno entendendo-o como individual, como chegaríamos a esses números? Cinco crianças internadas por aborto no SUS diariamente no Brasil. Cento e oitenta mulheres estupradas por dia.

“quando a ermesinda veio, entrou no nosso lado da casa (...) surpresa com a minha aparição gaguejou algo que não ouvi, tão grande foi o ruído de minha mão na sua cara”.

“ficou revirada no chão, esfregada de dores no corpo todo, a respeitar-me infinitamente para se salvar de morrer, e como me deitei fiquei, surdo de ouvido e de coração”.

É um exercício angustiante colocar-se dentro das páginas do livro de Mãe, mesmo que a partir da distância que a narrativa nos permite. É mais terrível, porém, imaginar que tal violência é parte da vida diária de tantas mulheres e crianças. Ou melhor, da vida diária do país. Lembremos dos médicos que diariamente se deparam com mulheres e meninas que passaram por abusos nos plantões; lembremos dos professores que diariamente convivem com crianças vítimas de violência em escolas públicas e particulares; lembremos de amigos, de vizinhos, de conhecidos e de colegas de trabalho que percebem a violência se abatendo contra alguém muito próximo. Tarda a considerarmos esses abusos como problema social, que não será resolvido com denúncias irrisórias.

Para além de enquadrar tal realidade como particular, existe ainda uma outra ótica muito comum dedicada ao problema que diz respeito a fazer acreditar que ele está para além da casa. No escuro das ruas, no caminho mal tomado, nos espaços sociais que as mulheres se atreveram a ocupar. Conforme os números comprovam, contudo, é no centro da família, essa instituição hoje tão defendida e ostentada pelo poder público, no centro da família brasileira que o problema encontra sua preponderância.

“se lhe dei o primeiro corretivo de mão na cara não foi porque não a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós, assim te aceitei por decisão de meu pai que quer o melhor para mim, mas deus quis que eu fosse este homem e tu a minha mulher, como tal está nas minhas mãos completar tudo o que no teu feitio está incompleto [...] deitei-me, a minha mãe estremeceu do lado de lá da parede. o meu pai desconfiou do meu pulso para decidir a vida sozinho. o aldegundes arrepiou-se por todos, ali sozinho de mim [...] a saber que cada um de nós se afastava para uma nova realidade, apartados pelas opções e papeis que nos eram destinados desde sempre”.

O fato é que, ao nos deslocar para dentro de uma família subjugada pelas relações de trabalho na Idade Média, ficamos com a sensação de que Valter Hugo Mãe não fala de outra coisa que não das questões que nos preocupam hoje. A grande maioria dos atos de violência se dão e se acobertam no centro das famílias. O autor é preciso em apontar o decoro, a ideia de manter particulares os segredos da casa, como uma das estratégias mais bem sucedidas de todo esse ideário machista.

Cabe frisar que o autor também constrói personagens destoantes, que buscam e encontram outros destinos. Se não escapam à violência, tomam para si o propósito de não perpetuá-la ou o objetivo de combatê-la. Mas não são esses os personagens que se encontram com os dados mencionados aqui. Cento e oitenta mulheres são estupradas por dia no Brasil. Cinco crianças de dez a catorze anos internadas no SUS diariamente em decorrência de abortos. Se o livro constrói outros personagens e nos leva a intuir possibilidades capazes de modificar esse problema, não é esse o ponto em que se encontra a nossa realidade geral. Enquanto país, infelizmente, ainda não conseguimos passar dos primeiros capítulos.

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