Verdades solúveis. Comentário sobre “A especulação imobiliária”, de Italo Calvino

 
Por André Cupone Gatti

Italo Calvino. Foto: Johan Brun.


 
Uma Itália de andaimes e concreto fresco, um lugar prenhe de futuro, a construção de um novo mundo e de uma nova História sobre o luto deixado pela Segunda Guerra Mundial. É esse cenário do pós-guerra, com sua pressa do porvir, cercado cada vez mais de “homens de negócios”, que Italo Calvino elege como tema de seu romance A especulação imobiliária (1957).
 
E como nenhuma configuração histórica e social deixa de ser refletida na identidade dos indivíduos de um tempo e de um lugar, o tema de Calvino nesse romance é também a fragmentação, a incerteza, que esses novos tempos promovem na cosmovisão do homem moderno, sobretudo daquele identificado como intelectual. O boom econômico dos anos 50 abriu a devida brecha para a valorização de um novo homem, um homem não somente sem “qualidades”, mas que subjuga às necessidades do “homem prático”, qualidades temporárias. O tentáculo de um novo liberalismo vem nublar a já nublada realidade do século XX.
 
Quinto Anfossi, personagem central do romance, é um ex-comunista oscilando entre as grandes metrópoles e a cidade de onde veio, na Riviera italiana; numa dessas visitas à cidade natal, é arrebatado pela mudança da paisagem operada pela especulação imobiliária. Sentindo, ao mesmo tempo, uma nostalgia do lugar antes da “invasão do concreto”, uma indiferença intelectual e uma vontade de acompanhar os novos tempos, Quinto entra no jogo dos negócios e decide vender parte do terreno da casa paterna e especular, construir, lucrar. Esse homem — que duplica com bastante sinceridade as incertezas pelas quais se via imerso Calvino quando escreveu o romance, também recém desligado do Partido Comunista e passando por uma crise enquanto autor e intelectual — esse homem, em suma, é todo oscilações e contradição.
 
A realidade concreta se impõe na maneira de experienciar a vida social. Ela é dura como os novos prédios de baixo custo amontoados na enseada, ela é anônima e homogênea como a nova arquitetura invasora. Caisotti é um pequeno construtor completamente assimilado por essa realidade; esse homem pouco instruído que parece uma “criança” e um “tubarão”, é a ponte eleita por Quinto para que ele passe de intelectual a homem prático.
 

Mas tanto a aparente dureza dos contratos quanto a suposta alma empreendedora de Quinto sucumbem a um tedioso labirinto de ânimos e interesses volúveis, de vias que levam a lugar nenhum, como a própria construção que crescerá com dificuldades, rumo a um fim quase impossível. A armadilha do espírito prático é brilhantemente resumida em poucas linhas: “Toda a paixão pela prática, pela realidade concreta, ei-la ali: um amontoado de material inútil, que não chegava a ser nada, veleidades, tentativas não concluídas.” (CALVINO, 2011, p. 101)

As vacilações identitárias de Quinto acentuam-se graças à efervescente vida material que o cerca com suas aparentes certezas e sua constante indefinição; ele, tentando dar conta de toda essa realidade, torna-se também incerto, contraditório, cambiável, como se, imerso numa farsa, trocasse de máscaras constantemente. 

Disso, ou seja, da incerteza em relação a qual persona encarnar frente a um mundo múltiplo e fragmentado, nasce o tom farsesco do romance, permitindo uma abordagem leve e ágil de um tempo convulso, e nos fazendo lembrar da obra de um outro grande autor italiano, Luigi Pirandello. O próprio “modo turístico de gozar a vida, modo milanês e provisório” (CALVINO, 2011, p. 71), os hábitos da nova gente que faz de tudo para passar o final de semana na praia lotada, o crescimento desregrado das construções que aniquilam a paisagem em prol do desejo burguês de possuir um apartamentinho no litoral, tudo isso é sintoma agudo de uma realidade inclinada à farsa, da cega inconstância identitária de toda uma novíssima geração.
 
No novo mundo movediço que engole momento após momento, máscara após máscara, a realidade e as identidades são perecíveis, e talvez não haja um modo mais sucinto de radiografá-las a não ser inserindo-as num contexto farsesco, que permita vislumbrar tanto a sua urgência concreta, factual, quanto o seu caráter enganador, provisório e inconclusivo. 

A redoma que nos encerra é a cabeça do intelectual (Quinto ou Calvino?): seu mal-estar, a consciência de que as respostas já não são mais definitivas, de que os significados não duram e de que a persona é uma tabula rasa em busca de uma qualidade passageira. Suspeita-se de que nem mesmo uma construção de tijolos e concreto possa ser tangenciada pela certeza. Em A especulação imobiliária vemos tudo tornar-se espera e frustração, depois indiferença e banalidade, isso em uma época que, à primeira vista, construía justamente o futuro, a motivação e o progresso. 

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