Nos 50 anos de Feliz Ano Novo, a história de uma censura

Por João Victor Uzer


Rubem Fonseca, anos 1970. Arquivo do escritor.


Em 2025, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, completa 50 anos. Uma das coletâneas mais lembradas do autor, o livro ganhou notoriedade devido seu histórico com a ditadura. O fato de ter sido censurado sob a alegação de atentar contra a “moral e os bons costumes” é bem conhecido, mas outro aspecto importante desse evento é normalmente negligenciado: o escancaramento da ignorância dos censores.
 
Fonseca é bem celebrado pelo seu estilo caraterístico, denominado brutalismo pela crítica. Com personagens periféricos e o uso de uma linguagem marcada por gírias, a literatura fonsequiana se destacou nos anos 1960. Assim, quando Feliz Ano Novo foi publicado, o autor não era nenhum anônimo; já havia publicado outras três coletâneas de contos Os prisioneiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia McCartney (1969) e o romance O caso Morel (1973). Com Lúcia McCartney recebera o prêmio Jabuti. Destaque que se reafirma na capa da primeira edição do livro cinquentão com os dizeres “autor de O caso Morel e Lúcia McCartney”.
 
Seu estilo se mostrara desde o seu primeiro livro, mas pode-se dizer que a coletânea de 1975 foi divisora para a literatura do escritor. A violência é o ponto em comum dos contos que compõem a obra. Há ainda sexualidade, seja com a banalização e fim do nobre esporte “conjunção carnal” ou na revista feminina escrita por homens e para homens. Mandrake, o advogado / detetive, personagem frequente na literatura do escritor mineiro, faz uma apresentação salvando a reputação de um cliente que se envolveu com uma travesti. Personagens lutando contra o desemprego também são presentes.
 
Os pesquisadores João Batista Pereira e Josineide Maria da Nóbrega afirmam que “a violência não é apenas um modelo simbólico, mas uma forma de expressar miséria e desigualdades”, mas deve-se observar que violência não é uma característica dos pobres. Certo conto acompanha um homem de dinheiro que sai durante a noite para atropelar pedestres. Outro relata um homem rico que assassina um pedinte. Mas, mesmo isso é um privilégio de Feliz Ano Novo. Os prisioneiros trazia não só a prosa direta e crua do autor, como os temas violentos e grotescos; as mesmas características se notam ainda no premiado Lucia McCartney.
 
A grande virada de chave que colocou o livro sob a luz dos censores da ditadura militar partiu da Universidade Federal de Ceará (UFC). Em 1976, a Polícia Federal recebeu a denúncia da utilização do livro no curso de literatura. Conforme explicita a ementa, o objetivo era a “Análise e composição do texto através do seu estudo como inter-relação dos níveis semântico, morfossemânticos e fonológico da língua”. Nesse sentido, o estilo fonsequiano era um ótimo objeto de estudo. Não para os militares. Na palavra dos agentes: “custa acreditar haja obtido permissão a sua comercialização”.
 
Rubem Fonseca era ainda colaborador de uma revista nitidamente “esquerdista”, outro motivo que depunha com o escritor. Houve então, em outubro, o pedido pela censura e recolhimento dos livros em todo país. E por ser material usado em sala de aula, pediu-se urgência com o cumprimento da sentença. Em dezembro, o pedido foi encaminho à autoridade competente e o veredito foi dado, conforme se lê:
 
“O presente livro de Rubem Fonseca, publicado pela Editora Artenova S.A., estabelecida à Rua Prefeito Olímpio de Melo, número 1774, São Cristóvão – RJ., reunindo vários contos autônomos do referido autor, retrata, em quase sua totalidade, personagens portadores de complexos, vícios e taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na prática da delinquência, suborno, latrocínio e homicídio, sem qualquer referência a sanções.
 
O autor utilizou-se de uma linguagem bastante popular onde a pornografia foi largamente empregada, como pode ser constatado nas 35 páginas assinaladas.
 
Por outro lado, nas páginas 31, 139 e 141, são feitas rápidas alusões desmerecedoras aos responsáveis pelo destino do Brasil e ao trabalho censório.
 
Ao nosso ver a presente obra vai encontro ao que determina o Decreto-lei nº 1077, no seu artigo 1º em deste modo, opinamos pela Não Liberação.”¹
 
Como a obra já havia sido comercializada determinou-se, sob assinatura do Ministro da Justiça Armando Falcão, a “apreensão de todos os exemplares expostos à venda”. Mas, esse não foi o fim de Feliz Ano Novo para os militares. A polícia passou dificuldade na apreensão dos livros, logo esgotados nas livrarias.
 
Mas, o mais importante, como foi publicada e comercializada uma obra de qualidade tão baixa, que atentava contra a moral, pornográfica, que fazia pouco do governo e dos censores, e ainda escrita por um esquerdista? O diretor da Polícia Federal tentou responder:
 
“O controle e apreensão de livros que, por seu conteúdo político, atentam contra o regime torna-se difícil, pelo DPF, por ser da competência do Ministério da Justiça, sem ser, especificamente, atribuição deste Departamento.
 
Não dispondo de elementos capazes de apreciar esse tipo de publicação, obriga-se a Direção-Geral a conseguir elementos extras e a remunerá-los com verba especial. A inexistência da estrutura para tal atribuição resulta em trabalho imperfeito e, muita vez, fora da oportunidade.”
 
Ou seja, a Polícia Federal se desobrigava da sua responsabilidade. O assessor do ministro, citando páginas e páginas de leis, rebateu na direção contrária, que sim, era competência da Polícia Federal o confisco e controle de obras que atentassem contra o regime. Mas uma concessão importante colocou os dois braços do governo em reconciliação: “A circunstância de haverem perdido o seu vigor deve-se a uma questão fática, inegável, qual seja a insuficiência de pessoal e a carência de meios para executar a missão, com que se defronta o Departamento de Polícia Federal.”
 
A Polícia Federal simplesmente alegava que não tinha pessoal (que a alocação de agentes somente para a leitura de obras possivelmente subversivas comprometeria suas outras funções) e que, mesmo que pudesse, seu pessoal não era qualificado para fazer uma leitura crítica de obras políticas. Propôs-se, então, uma ação conjunta: “A criação de um Grupo Permanente de Trabalho, composto de três pessoas, indicadas pelo D.P.F., pelo Gabinete Ministerial e por esta Consultoria Jurídica, o qual se incumbiria de estabelecer os critérios para a proibição dos livros.”
 
O tal grupo de trabalho logo recebeu uma lista com os livros e documentos que deveriam ser estudados. Porém, os integrantes encontraram o mesmo problema denunciado pela Polícia Federal. Em seu primeiro relatório, se queixam:
 
“O Grupo deparou-se inicialmente com 45 processos para serem examinados no Ministério da Justiça. No Departamento de Polícia Federal constatou-se a existência de 473 livros pendentes de análise, todos eles de conteúdo político, escritos em idiomas vários, encaminhados aquele Departamento pelas suas Superintendências Regionais nos Estados e por órgãos da Comunidade de Informações. Tal acervo constitui material completamente fora do alcance e da capacidade analítica dos integrantes do Grupo, quer pelo volume a ser analisado, quer pela inacessibilidade a determinadas obras em razão das línguas em que estão versadas.
 
[…]
 
É conveniente, no entanto, assinalar que o Departamento de Polícia Federal não dispõe de pessoas qualificadas para proceder a análise de livros de natureza política […] Ora, se uma repartição da complexidade do Departamento de Polícia Federal, infraestruturada, julga-se sem condições de executar tal tarefa, como haveria de fazê-lo 3 (três) pessoas físicas?
 
[…]
 
Haveria o Ministério da Justiça que criar nos quadros do DPF um corpo de analistas formados na Academia Nacional de Polícia e/ou Escola Nacional de Informações — com amplos conhecimentos sobre o assunto e versados em vários idiomas — ou permitir a colaboração de pessoas estranhas ao Serviço Público.”
 
Ou seja, o “problema” não foi resolvido e foi jogado na mão de outras pessoas. O grupo pediu pela sua dissolução e propôs, em contrapartida, a criação de agentes especializados em estudos literários e filosóficos.
 
Os censores e militares conseguiam reconhecer um “livro ruim”. Mas o entendimento de que aquela “literatura pobre”, que “custa acreditar” ser comercializada, configurava perigo à segurança nacional? Atentar contra a moral e bons costumes? Sim, fácil de identificar. Mas, “livro político”? A questão requeria uma maior reflexão.

Evidentemente, os contos brutos de Rubem Fonseca não foram os únicos motivos que levaram os militares ao reconhecimento de sua própria ignorância, mas é listado e comentado em documentos como uma evidência da necessidade de unidades treinadas para identificar “obras políticas”.
 
A censura não paralisou o escritor, que entrou na justiça sucessivos pedidos e apelações. Em 1980, a proibição foi mantida e só foi derrubada em 1985. Os livros demorariam ainda mais quatro anos para voltarem às livrarias. E, desde então foi reeditado várias de vezes e ganhou contornos mitológicos.
 
Eu, por acaso, encontrei uma primeira edição de 1975 em um sebo. No final do primeiro conto, o antigo dono deixou um registro. Disse: “27/12/90 – Péssima Literatura”. Acho que as coisas não mudaram tanto assim.


Notas:
1 Este e outros documentos e relatórios do caso aqui referidos podem ser encontrados online no Fundo Divisão de Censura e de Diversões Públicas, no Arquivo Nacional: aqui, aqui e aqui


Referências
GARLET, Deivis Jhones. Os motivos da censura em Feliz ano novo, de Rubem Fonseca. Literatura e Autoritarismo, n. 14, 2015.
GLOBO. Feliz Ano Novo é proibido pela censura. O Globo. 24/09/2013. Disponível aqui.
PEREIRA, João Batista; DA NÓBREGA, Josineide Maria. Ecos da violência em vozes marginais: o brutalismo em feliz ano novo, de Rubem Fonseca. Revista Guará-Revista de Linguagem e Literatura, v. 11, n. 1, p. 55-66, 2021.
 


João Victor Uzer é natural da região metropolitana do Rio de Janeiro, historiador e bibliotecário. Desde 2018, escreve ensaios e pequenas crônicas para blogs, jornais e revistas online.
 

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