Biologia do homem, de Jorge Reis-Sá

Por Pedro Fernandes




Já por aqui tive a grata surpresa de ler duas representações em gêneros diferentes do escritor português Jorge Reis-Sá. A primeira oportunidade foi o encontro com O dom, um romance. A segunda foi com um livro de poesia Biologia do homem. A partir da primeira experiência, decidi incluir o autor numa leitura comparada que resultou num curso que ministrei em 2011, se não me deixa faltar a memória. A leitura de O dom me deu pano para discutir a relação óbvia e direta que este romance mantém com o Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. A quem interessar saber mais dessa relação, pode ler aqui algumas notas que escrevi sobre.

Sei que Reis-Sá dispõe, do primeiro gênero, outros títulos, Por se preciso, Terra, Todos os dias. Que somente estes textos superam em quantidade os títulos de poesia: além de Biologia do homem, À memória das pulgas da areia, Quase e outros poemas de querença, A palavra no cimo das águas. E mesmo tendo lido apenas dois textos representativos de cada gênero, permitam-me que diga: Reis-Sá é um romancista em formação, mas poeta nato. A quase-crítica precedida do elogio tem suas razões: pode ser mera subjetividade (mas qual crítica não é um tanto subjetiva), porque estive, de fato, muito próximo de uma voz autêntica que não se desvanece diante de pares contemporâneos de tato e timbre poético mais sedimentado como Herberto Helder, Ruy Belo, e outros admitidos pelo próprio poeta num conjunto de notas publicadas ao fim do livro e sobre as quais darei retorno mais adiante.

Há uma voz que diante dos outros mais se confirma como sendo um tom novo e diga-se, condição rara, porque para quem escreve com um par tão significativo sobre os ombros como é Fernando Pessoa, o inalcançável, e mesmo entre os nomes que citei e outros – que são muitos – que compõem o extenso mosaico da poesia portuguesa, ter voz que se possa chamar de sua (ainda que minha afirmação seja aqui uma provisoriedade marcada pelo alumbramento com a palavra), deixa de ser um simples elogio para ser uma responsabilidade.

Também já me explico porquê de ser uma responsabilidade. Antes, deixem-me que apresente o corpo dessa obra, dividida entre duas partes: caminho de candeeira, a primeira, e força de coriolis, a segunda. As duas partes se compõe de elementos que definem – se não, dizem – do próprio poeta. A primeira vai em direção do homem Jorge Reis-Sá, que afinal, é força vocal transmutada no eu-lírico dos versos; a segunda em direção do poeta em si, construído sobre uma bagagem de palavras que não são apenas os pares. Nem só dessa poesia claramente desenhada sobre forma de verso-estrofe vive o poeta, e se muitos não admitiram, Reis-Sá despe-se de qualquer temor e situa-se rodeado de tantas outras influências tão importantes quanto estes. Todos são seus pares: Mark Koselek e Elliot Smith (música), Ruy Belo, Alexandre O’Neill, Fiama Hasse Pais Brandão e Mário Cesariny (poesia), Valter Hugo Mãe (embora este também tenha já escrito/escreve poesia) Urbano Tavares, (romance).

Alguns desses são, inclusive, citados diretamente e mostrado propositalmente pelo poeta nas já referidas notas no fim do livro, gesto este que incopora pelo menos dois sentidos: um, a honestidade para com os da palavra e um interesse em fazer-se entre eles; outro, um rompimento com o segredo sobre as influências, como se dissesse para o leitor mais curioso, toma, aí estão minhas bases, recorre a elas se de fato queres uma compreensão mais acurada sobre mim. E está a composição do homem-poeta ou sua biologia (com certa carga de autobiografia): o poeta é feito de coisas comuns, que lhe são “caminhos de candeeira”, do lugar de inquietação sobre o mundo, de sentimentos, de observação das coisas, de encontros com nuances da vida, de intimidades, de sentidos e de palavras. Recorro a um dos poemas neste livro que dizem – com toda clareza – sobre isso:

            Todo poema

           Todo poema é circunstância de um tempo e de um lugar.
           Todo poema é memória dessa circunstância. Todo poema
            é memória de um tempo e de um lugar. Todo poema é memória.

Sim, porque tudo aquilo que se define como “caminhos de candeeira” é palpável apenas pela memória – que é disso que é feito também o poeta. Fazê-la voz entre as vozes diversas de seu tempo é um tratamento dado a poucos. E se antes afirmei que Reis-Sá consegue isso, é porque suponho saber de que ele tem ciência disso e faz disso sua responsabilidade. Sabe tanto que joga com ela para aquele que lhe lê, ou não serão propositais aquelas duas epígrafes colocadas na abertura do livro: a primeira, de Fiama Hasse Pais Brandão, “Em todas as presenças eu esperei/ a do leitor. Queria ver-lhe os cílios/ tremerem com a mancha poética.”; a outra, de Manoel de Barros, “Para enxergar as coisas sem feitio é preciso/ não saber nada./ É preciso entrar em estado de árvore./ É preciso entrar em estado de palavra./ Só quem está em estado de palavra pode/ Enxergar as coisas sem feitio.”

Um jogo de mostra-se e se esconde. É a mesma retórica do fingimento pessoano sob um ângulo reinventado. O poeta toma da voz de Fiama para se por como entidade totalmente nas mãos do leitor, quer que ele seja tomado pelo mesmo estado epifânico que está tomado o poeta pela palavra. Quer que ele vislumbre o corpo do poeta aí, despido. Mas não quer ser visto como coisa, quer ser palavra, somente palavra. Nesse estado não é o poeta quem permanece, é somente a memória, afinal, “todo poema é memória.”


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