Lições do mestre: entrevista exclusiva com Antonio Candido


 
Antonio Candido. Foto: Kiko Ferrite. Almanaque Saraiva. Reprodução/ Divulgação


O Almanaque Saraiva edição do mês de março de 2014 traz, em primeira mão, uma entrevista muito significativa sobre um dos maiores nomes da crítica literária brasileira, Antonio Candido. E por isso, o teor da conversa não pode permanecer apenas no impresso, mas divulgado noutras mídias. A coluna Vídeos, versos e prosas há muito sem receber uma contribuição, volta com uma presença de peso. “Com 95 anos, o crítico literário que mudou a maneira de interpretar o país e a cultura nacional fala de sua rotina, das mulheres importantes na sua vida e relembra histórias do passado” – assim anuncia Maria Fernanda Moraes, quem o entrevistou.

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O bigode alvo e bem aparado desalinha-se vez ou outra enquanto Antonio Candido responde pausadamente a cada pergunta. As articulações da fala se alternam com um sorriso elegante enquanto ele se entrega à memória que lhe traz anedotas todo o tempo.

A calça social azul escura e a camisa alguns tons abaixo são arrematadas por cinto e sapatos pretos discretos. Os cabelos esparsos e brancos que ainda acompanham as laterais da cabeça denunciam os 95 anos. Na mão esquerda, a aliança do casamento com Gilda de Mello e Souza, ensaísta falecida em 2005, é um dos poucos acessórios que traz consigo, além dos óculos retangulares que parecem já fazer parte do rosto esguio.

O crítico literário mais importante do país mora sozinho em seu apartamento em São Paulo (SP) e leva uma vida simples. Usa seu tempo lendo os grandes clássicos e assiste a filmes antigos. Sentado de pernas cruzadas quase o tempo todo, próximo à estante de livros onde guarda suas preciosidades, mostrou alguns livros, assinou outros e quis datilografar a entrevista toda, apesar da filha, Ana Luísa Escorel, ter se oferecido para fazer isso. Essa é uma de suas premissas: apesar de receber a equipe e sua casa para uma conversa e algumas fotos, preferiu responder toda a entrevista por escrito – “Uma entrevista resulta sempre mais fiel quando dada por escrito”, enfatiza.

À moda antiga, datilografou todas as respostas e as enviou pelo correio. Não é adepto das novas tecnologias, não usa e-mail e achou graça quando perguntado sobre tablets. “Nem sei o que é isso. Sou um homem conservador.”

Bem-humorado e faltante, vez ou outra era interrompido pela filha, preocupada com seu cansaço. Dando de ombros, continuava falando. Os ouvidos o castigam um pouco, mas resiste ao aparelho. Gosta de fazer tudo sozinho e sempre dispensa ajuda.

Lembrou de alguns episódios de sua vida, como quando começou a fazer resenhas para o jornal e dos escritores que apresentou. Ficou embasbacado quando leu o primeiro livro de Clarice Lispector, por exemplo, e tinha certeza de que aquele nome era um pseudônimo. Reconheceu em Graciliano Ramos, um de seus atores favoritos, algo de diferente de todos os outros regionalistas. “Ele era muito bom. O que ele fazia ninguém fazia.” Refere-se com carinho às dedicatórias que recebeu do escritor alagoano na ocasião do lançamento de uma coletânea que trazia obras como Infância, Caetés e São Bernardo. Graciliano enviou a Candido todos os livros autografados e, com o mau humor costumeiro, escreveu dedicatórias apontando o crítico como “culpado” pela reedição de seus livros.

Hoje ele diz que não se interessa mais por literatura e não acompanha o movimento editorial. “A qualidade média dos escritores brasileiros melhorou. Para que a literatura de um país seja relevante, é necessário que tenha muitos escritores bons, a média deve ser boa. Porém, o Brasil não produziu outro Graciliano, nem outra Clarice ainda”. Para ele, a melhor literatura e crítica literária do mundo é a italiana. “Nós temos muita influência da crítica francesa, mas devíamos olhar mais para a italiana”.

A vivacidade política não diminuiu. Candido, que é um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), mantém uma amizade de longa data com o ex-presidente Lula e sempre discute com Roberto Schwarz, também crítico literário, sobre sociologia e política.

Ainda jovem, Antonio Candido começou a cursar Direito, mas migrou para a Sociologia. Como professor e orientador, formou grandes nomes da literatura brasileira e, como ele mesmo diz: “Você tem que saber escolher o aluno. Você sabe aqueles que são bons e os ajuda a ficarem melhores”. Tinha talento mesmo era para professor de escola, pondera, já que tem uma visão muito mais geral da literatura do que específica, por isso o desinteresse por novas correntes teóricas. Para ele, as pessoas devem sempre se cercar de outras melhores do que elas, porque isso estimula o indivíduo a ficar melhor. “Eu sempre me cerquei dos melhores, como a minha mulher, que, além de tudo era muito mais ‘moderna’”.

Ao lembrar da infância, também ressaltou a presença feminina. O pai, que era médico, despertou seu interesse pela literatura e costumava reunir os filhos para a leitura de livros. Mantinha uma conta na livraria para que os filhos tivessem livre acesso às obras.  A mãe, muito culta, foi também uma grande influenciadora. As mulheres da família são melhores do que os homens, recorda. “Todas elas, inclusive minhas filhas e minha mulher”.

Transcrevemos aqui ao pé da letra o bate-papo com o crítico:

Almanaque: Como é sua rotina hoje em dia? O senhor ainda escreve? Acompanha a literatura contemporânea, as notícias do meio editorial e acadêmico?

Antonio Candido: Deixei de publicar há muito tempo, e há muito tempo me desinteressei das literaturas contemporâneas, tanto brasileira quanto estrangeira, o que é explicável pela minha idade. Sou um sobrevivente, preso aos fatos literários e aos valores de outro tempo. Não tenho computador e costumo dizer que parei na máquina de escrever e no telefone.

A: É sabida a influência que o seu pai teve sobre a educação e o encaminhamento dos filhos à leitura. O senhor também vê essa influência em relação aos seus filhos? Há algumas publicações de Ana Luísa que tratam um pouco desse mundo (como O pai, a mãe e a filha), por exemplo.

AC: Minha mãe e meu pai, que era um médico muito culto, foram a base de nossa formação, minha e de meus dois irmãos, porque se ocupavam diariamente em nos instruir de algum modo. Costumo dizer a minhas três filhas que nunca fiz pela formação cultural delas o que nossos pais fizeram pela nossa. Mas elas souberam aproveitar ao máximo a tradição familiar, e nesse sentido, minha mulher foi decisiva, porque juntava a informação ao senso dos valores artísticos.

A: O senhor está com 95 anos e imagino que o seu espírito crítico seja intrínseco ao passar dos anos. Mas, na sua avaliação, houve alguma mudança ou adaptação desse espírito crítico com o tempo? Hoje ele é diferente de 30, 40 anos atrás?

AC: No tempo da adolescência, quando se fazem planos e se idealiza o futuro, nunca pensei em ser escritor e muito menos crítico, mas sempre li como certo prazer artigos de crítica, sobretudo no Boletim de Ariel, mensário bibliográfico publicado no Rio de Janeiro (RJ) a partir de 1931. Antes de 1941 publiquei apenas um artiguete sobre história alemã no jornalzinho efêmero que fundamos no Ginásio Municipal de Poços de Caldas, Minas Gerais (MG), onde morávamos. Tornei-me crítico sem querer, por imposição de dois amigos, Alfredo Mesquita e Lourival Gomes Machado, que imaginaram a Revista Clima em 1941 e me obrigaram (é o termo exato) a assumir a resenha de livros. Eu estava no 3º ano da Universidade de São Paulo (USP). Em 1943 Lourival me empurrou para a grande imprensa e me tornei “crítico titular”, como se dizia, da Folha da Manhã, atual de São Paulo. Comecei muito interessado na função social da literatura, e como estava começando a ter alguma atividade de esquerda, fui um pouco sectário. Em seguida, percebi a autonomia relativa dos textos, o que me levou a sentir melhor a sua integridade artística e pensar na transmutação estética dos estímulos sociais e culturais. Creio que depois dos anos de 1950 pouco absorvi em matéria teórica. Mas são os outros que podem avaliar com mais objetividade o teor real e a eficiência do nosso trabalho.

Antonio Candido. Foto: Kiko Ferrite. Almanaque Saraiva. Reprodução/ Divulgação

A: O senhor já escreveu para diversos jornais e também idealizou o Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo. Como vê hoje a crítica literária?

AC: No meu tempo de moço a crítica era feita sobretudo na imprensa, mesmo porque não havia no Brasil cursos superiores de Letras antes de 1934, quando foi fundada a Universidade de São Paulo (USP). Eu sou formado em Ciências Sociais e aprendi o ofício quebrando a cabeça em revistas e jornais. Hoje, as universidades têm uma produção crítica de peso, apoiada na pós-graduação e no regime de bolsas, que permitem refinar a formação dos estudantes. A investigação se desenvolveu de maneira inédita, os estudos de literatura têm uma formação que não havia e produzem escritos de cunho monográfico que antes eram raros. Como não tenho grande interesse pelo momento literário atual, acho difícil responder de maneira mais precisa a pergunta.

A: Na época de criação da Revista Clima (1941), o senhor e seu grupo de intelectuais envolvidos no projeto viviam a ebulição de cidade de São Paulo que estava a pleno  vapor, em termos culturais, sociais e políticos. Depois de tantos anos morando na cidade, há alguns lugares especiais para o senhor? Que lugares vocês costumavam frequentar àquela época? O senhor ainda costuma passear pela cidade?

AC: É verdade que minha geração viveu momentos de grande força renovadora em São Paulo: criação dos estudos humanísticos em nível superior, atuação fundadora e transformadora de Mário de Andrade no Departamento Municipal de Cultura, polarização fascismo-socialismo, politização crescente tanto dos intelectuais quanto dos trabalhadores, aceitação do modernismo na literatura e nas artes, etc., etc. Talvez o grupo ao qual eu pertencia tenha sido o primeiro a estabelecer certa ligação entre a Faculdade de Filosofia da USP e a cultura da cidade. Nós nos envolvemos, por exemplo, na política cultural, sobretudo no quadro da seção paulista da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), fundada no Rio de Janeiro em 1942, culminando no histórico 1º Congresso Brasileiro de Escritores realizado em São Paulo (SP) em janeiro de 1945, que arregimentou intelectuais de várias tendências políticas contra a ditadura do Estado Novo. Quanto ao convívio, o nosso grupo costumava se reunir na Confeitaria Vienense, na Rua Barão de Itapetininga a partir de 1939, e depois de 1942 na Livraria Jaraguá, Rua Marconi (esta foi a primeira; no mesmo lugar, com o mesmo nome, houve outra depois, totalmente diversa). O centro da cidade concentrava tudo, mas hoje parece um espaço inóspito que deixei de percorrer há muito tempo.

A: As publicações na Revista Clima podem ser consideradas o seu início como crítico literário. Mas e o seu lado leitor, como e quando foi despertado? O senhor se lembra do primeiro livro que leu?

AC: O título de nossa revista, Clima, foi dado por um dos seus idealizadores e depois diretor Lourival Gomes Machado, que era uma espécie de líder e infelizmente morreu cedo. Eu e outros recebemos o encargo das diferentes seções – Livros, Teatro, Cinema, Artes Plásticas, Música, Economia, Ciência – e nos especializamos nelas. Certa vez perguntaram a Ruy Coelho de que maneira fizemos Clima. Ele respondeu muito bem que nós não fizemos Clima, foi Clima que nos fez. Quanto a mim, confesso que tive medo de fracassar. Acho que, se dei conta mais ou menos do recado, foi porque os 15 anos, a conselho de minha mãe, eu vinha enchendo cadernos com comentários de leitura. Só depois de maduro percebi que essa foi a minha modesta formação de crítico involuntário, leitor compulsivo desde os 6 anos, que a partir dos 9 começou a se interessar pelos livros de adulto. Talvez algum do Monteiro Lobato, cuja obra de literatura infantil a minha geração viu surgir e se desenvolver.

A: Em relação à crítica literária, como o senhor sentiu que poderia fazê-la? O que é preciso ter para ser um bom crítico? Os alunos formados nos cursos de Letras estão preparados para seguir a carreira da crítica literária?

AC: Nunca pretendi ser crítico nem tive formação para isso. De modo geral sempre me orientei por uma espécie de instinto, ou faro literário, mesmo quando pensava estar obedecendo a algum princípio teórico. Tenho um corte mental empírico e acho que a crítica literária é um gênero menor, destinado a servir aos gêneros maiores da literatura. Formei-me na imprensa periódica e só comecei a ensinar literatura aos 40 anos, concebendo sempre o ensino como um tipo especial de crítica, e acho que os estudantes de Letras devem pensar nisso. No ensino, dei sempre importância à análise literária, que é uma tentativa de desvendar a organização e o significado dos textos, inseri-los na tradição e tratá-los como algo a ser avaliado. Ao que me consta, esse é um caminho fora de moda, mas acho que é válido para os estudantes de Letras. Eles têm bons exemplos a seguir, porque sempre tivemos boa crítica, desde Joaquim Norberto, e embora conheça muito pouco da produção atual, vejo pelas amostras que isso continua a ser verdade. Temos muitos críticos de qualidade, e agora também uma produção universitária que deu maior solidez ao gênero e soube incorporar a flexibilidade do ensaio.

A: Se o senhor pudesse dar um conselho a um leitor iniciante, o que diria?

AC: O verdadeiro leitor se esboça na infância e depende dos livros de que pode dispor. Pessoalmente, fui devorador precoce e indiscriminado de matéria impressa: livros didáticos, antologias, coleções infantis, tudo coroado a partir de certa altura pelos 18 volumes do Tesouro da Juventude, um verdadeiro manancial. Bem cedo entrei pelos livros de adultos com os Mosqueteiros de Alexandre Dumas. Nos anos de 1920 a ficção histórica inundou o Brasil e eu foi na onda, lendo sobretudo Paulo Setubal, o mais importante do gênero. Mas ao contrário da tradição média brasileira, nunca tive vontade de escrever ficção ou poesia. Acho que estava talhado para comentador de livros, como leitor obsessivo para o qual a leitura é, citando um escritor francês, “um vício sem punição”...

A: Numa entrevista antiga concedida nos anos 1980, o senhor então com 70 anos, dizia que pretendia viver mais uns 20 anos, pois gostaria de ver a passagem do século. Como foi a experiência?

AC: Acho que valeu a pena viver tanto tempo para ver certas modificações positivas que compensam o que há de horror na nossa época. Modificações realmente humanizadores, na moral sexual, na condição da mulher, na redução, mesmo discreta, da miséria brasileira. Por outro lado, me assusta a perenidade aparentemente irremediável da violência em todos os níveis. 


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