De mim já nem se lembra, de Luiz Ruffato


Por Pedro Fernandes



Há na literatura contemporânea uma diversidade de formas, estéticas, vozes e temas cuja natureza produz no leitor mais afeito à compreensão de que as obras estejam sempre tomadas por uma estética pura e simples, dotada de características determinadas se pergunte em qual escola poderíamos filiar este ou aquele escritor. Essa não é uma reflexão vazia; ela nasce de uma convenção formada naturalmente quando se estuda literatura no Ensino Médio, quando os professores muitas vezes reduzem a leitura ao deslindar de escolas literárias e esquecem ora do contínuo exercício de escritores (e mesmo outros leitores) contra a fixidez que um dia já serviu à definição das obras literárias. Também é isso um reflexo da presença e da força da história na sedimentação da compreensão sobre nossa realidade e o imperativo do didatismo com o qual tem-se reduzido as questões mais complexas.

Essa diversidade muitas vezes é recorrente mesmo no conjunto da obra de um mesmo escritor; é cada vez mais vigente a noção do escritor que foge do destino de que todo escritor dedica toda uma vida em torno de um único livro. Isso se pode dizer da literatura de Luiz Ruffato. Apesar de ser uma obra ainda em construção e, logo, com a possibilidade de todas as conclusões feitas em relação a elas sejam desfeitas no dobrar da esquina, o olhar ora exposto leva em conta, evidentemente, aquilo que os leitores já tiveram acesso. Há uma variada maneira como constrói sua obra, ainda que prevaleçam alguns dos temas que mais lhe encantam, como o de desvelar certa diversidade social sobre a formação do Brasil. É assim desde quando se propôs a compor um retrato sobre a vida da gente na grande cidade em Eles eram muito cavalos, o romance que o apresentou como uma importante voz da nossa literatura recente.

É isso que persiste, de certa maneira, em De mim já nem se lembra. O narrador principal cujo nome se confunde com o do autor, Luiz, reencontra depois da morte da mãe, um conjunto de cartas escritas pelo irmão quando este sai do interior de Minas Gerais para viver em São Paulo em busca de melhores condições de vida, cumprindo um destino que foi muito recorrente num passado não muito distante de nossa história. Note, que o tema do imigrante italiano é revalidado através dos fluxos dos povos de periferia do país para os chamados centros produtivos cuja força se manteve desde a ascensão do Estado Novo até meados da Era de Redemocratização. A transcrição das cartas, insere um novo narrador à trama que apresenta não apenas o dia-a-dia de um trabalhador simples fora de sua terra natal, mas é testemunha sobre as esperanças, a dor de estar longe dos seus, e as impressões que tem sobre a cidade e sobre a vida no interior.

Ao construir a obra dessa maneira, Ruffato trabalha uma estética comum no romance tradicional, a de quando o narrador recebia o conteúdo da narrativa através de terceiros, seja a correspondência, ou mesmo relato do vivenciado por outro a fim conferir ao narrado, maior força de verdade. No entanto, o modo como o escritor elabora De mim já nem se lembra, mesmo alimentado pelo gênero textual escolhido, foge de submeter a narrativa ao cabo da visão monolítica sobre a realidade, uma vez que Luiz, quem transcreve as correspondências de Célio, dedica-se ao compor um espécie de antes e depois da história e produz uma quantidade variada de interferências explicativas sobre datas e acontecimentos relatados nesse espólio de afetividades.

A estratégia narrativa confere ao romance outra característica: leveza e rapidez a uma história que não tem nenhuma coisa nem outra. Afinal que leveza pode haver na vida de alguém saído do interior com toda sorte de expectativas e perdê-las pelo caminho? Ou que rapidez pode existir numa história que cobre mais de trinta anos e num tempo dos mais turbulentos do nosso país? Há na escolha dessa estratégia narrativa uma maneira lúcida de reinventar as tradicionais e extensas sagas de família, das quais, nomes como Luiz Fernando Verissimo é um dos legítimos representantes na literatura brasileira.

Ainda nesse trabalho com a narrativa, é preciso observar o exercício minucioso com o qual Ruffato constrói o tempo – por um processo de interpenetração do presente, passado e futuro, sobretudo, no texto que abre o romance. Depois, o percurso cronológico desenvolvido pelas cartas, que reflete além do tempo histórico as idas e vindas de um jovem cujo único desejo é o de uma melhor vida para si e os seus (e isso deixará comovido o mais duro dos corações porque é afinal uma espécie de sonho universal e coletivo que sustentam os indivíduos na construção de suas próprias vidas); sobressai o vazio, a solidão, o sujeito obnubilado de suas forças mais íntimas para dar pulso ao motor das máquinas, isto é a substituição do humano pela brutalidade do capital. De certa maneira, esse romance é a constatação sobre a capacidade de falseamento da realidade pelo dinheiro – este que é capaz de comprar um lote de terra para planejar um casamento que não dá certo, a geladeira para a mãe, um uniforme original do Palmeiras para o irmão, mas não é capaz de retribuir a felicidade a quem compra. E Célio vê essa felicidade só possível de se realizar na gente rica dos do seu interior.

Nessa observação, há a revelação de algumas das grandes mazelas de nossa história: a ditadura militar e a perseguição desta aos trabalhadores, o levante dos trabalhadores da indústria automobilística pela campanha dos direitos salariais, a política nas mãos dos interessados sempre no benefício próprio, prática ainda reinante de forma absoluta no Brasil de hoje; a miséria no nordeste do país, os grandes fluxos migratórios da força para afagar os grandes tentáculos da indústria, as transformações do mundo pela e para as mulheres – Lena, com quem Célio desenvolve a possibilidade de casar, por exemplo, é a que desfaz o noivado em nome da profissão e do estudo, ou a irmã, que mesmo não querendo nada com a escola, tem para si uma liberdade sobre o corpo, os modos de agir e se envolver com os rapazes no interior. É um país em enervante transformação o que finda por ser o centro desse itinerário pelas cartas.

Mas, assim como os laivos da história e condição social do Brasil não são apenas recriações pela visão de um jovem cujo futuro é de aguardada esperança, nem tudo o que está em De mim já nem se lembra é apenas ficção. A última carta que não é escrita por Célio, mas pelo irmão, depois da compilação das correspondências, é um texto cuja assinatura é a do próprio Luiz Ruffato, testemunhando que nesse romance há mais de sua biografia que pode supor o leitor mais ingênuo. É Ruffato quem chama esse livro o mais integrado à sua própria vivência, aquele no qual mais se expôs: em 2001, quando da morte da mãe, o escritor encontrou entre os pertences cartas do irmão que viveu por quase uma década em Diadema para onde foi trabalhar como torneiro mecânico. 

Outra força abre-se no fim da narrativa, a da memória, o que afinal, é todo o motor propulsor dessa obra. O que se avista é um texto, de ponta a ponta, carregado de muita emoção e a construção de um retrato de muitos outros brasileiros que iguais ao Célio apostaram tudo – a própria existência – numa possibilidade de um futuro digno para todos. De mim já nem se lembra veste-se da força unânime que une toda comunidade humana: a determinação sobre o seu lugar de indivíduo no mundo. É, portanto, um grande feito que a Companhia das Letras tenha reeditado com outros ares que aqueles dados pela Editora Moderna, casa que primeiro publicou o livro num catálogo de infanto-juvenis. 


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