Cosmópolis, de David Cronenberg

Por Pedro Fernandes

O mundo numa limusine. Em Cosmópolis o carro é a figura de uma ilha itinerante que se confunde com a própria personagem vivida por Robert Pattinson (foto).


Há vários critérios para enquadrar um filme ou livro na sessão Cult. O melhor deles, e vou listar aqui um que certamente não está entre os da ficha da crítica especializada, não com esta definição, parece ser o soco mental. São as produções que desafiam o telespectador ou o leitor, as que o levam a pensar, as que melhor se enquadram nesse critério. Cosmópolis está entre esses títulos.

Faço um curto parêntesis para tocar no título A árvore da vida, filme de 2011, que assisti uma vez em casa aos trancos e barrancos entre o estágio de sonolência e o televisor e ficou para uma revisitação que até hoje não fiz. Não é que para ser Cult tenha de ser maçante. Mas é para apenas recortar o estágio comum que pude verificar entre uma plateia inquieta e desprevenida para o filme David Cronenberg: no início de tudo, a sala deveria ter em torno de 100 a 150 telespectadores; até o fim deve ter resistido 60% desse público – desses, uns podem ter dormido e outros conversado durante a sessão inteira. A expressa quantidade de pessoas estava ali, tenho certeza, apenas pela presença nos anúncios, do ator da saga Crepúsculo, Robert Pattinson, e, logo, na ânsia de que o filme em questão tivesse seu ponto de contato com o trabalho mais conhecido do ator. Está aí uma estratégia (não tenho a menor ideia se este foi o interesse do diretor) de marketing.

Mas o que tem Cosmópolis para ser um filme maçante na visão de abandono, dos burburinhos durante o filme e da constatação, na saída do cinema, ‘Ô-filme-ruim’? A resposta é: nada. Não é um filme como outro qualquer, mas pessoas é que estão acostumadas em ter trabalho mental para nada: foram criadas diante dos enredos prontos, da informação na ponta da tela sem que para alcance o cérebro não tenha de fazer esforço algum; na melhor das hipóteses possa apenas justapor cenas e alinhavar com o mastigado da pipoca e os goles do refrigerante. A grandeza do filme é justamente o caráter de inquietação mental que a narrativa propõe.

Definida já na sinopse como a grande narrativa do início do século, o filme que tem o título homônimo do livro do escritor estadunidense Don DeLillo, do qual Cronenberg faz a adaptação, Cosmópolis é, até para quem se deu ao trabalho de ler a obra antes, o que se pode dizer uma adaptação perfeita da literatura para o cinema. Pode ser engano, pois o próprio DeLillo pode ter escrito o livro já com esta intenção cinematográfica, território de onde boa parte da literatura contemporânea tem ido buscar alimento, diga-se; além do que, se retirarmos o movimento da imagem na tela e ficarmos somente com o texto, um dos grandes lugares neste filme também, notaremos que Cosmópolis tem muito do texto para teatro.

O mundo por um corte de cabelo. É apenas capricho, sede de poder, necessidade de autopreenchimento do tédio em que vive, o que leva Eric Packer, atravessar toda Nova Iorque em pleno caos por um corte de cabelo.

Já definido como uma pulsão futurista, o filme é sim uma fábula contemporânea. Eric Packer, um super-homem do capital, dos negócios, cisma no começo da manhã ir ter com um cabeleireiro da sua infância do outro lado da cidade para um corte de cabelo. Toda a narrativa se passa nesse trajeto sem que saibamos ao certo onde que o investidor tem a sede de sua empresa; certo é que todas as transações e acompanhamento do sobe e desce dos dólares na conta bancária de Eric é feito, como parece ser prática de outros investidores, a bordo da limusine que o transporta na ida ao cabeleireiro. Grande parte das ações, portanto, se passa no interior do carro.

O trajeto é assinalado por alguns grandes acontecimentos: primeiro, o capital está em queda e a cada hora milhões são esgotados da conta do yuppie; segundo, a cidade recebe a visita do presidente dos Estados Unidos e, com a crise econômica, milhões estão nas ruas em protestos contra política econômica; terceiro, um cortejo fúnebre de um rapper famoso completa o caos da cidade; por fim, Eric é ameaçado de morte por um inimigo sem rosto, só definido no final da narrativa. Diante de tantos empecilhos a viagem para um corte de cabelo do outro lado da cidade é mero capricho, uma necessidade exacerbada de demonstração de poder.

Em Cosmópolis os inimigos são invisíveis. Tudo é invisível. Não se vê dinheiro nas cenas, muito embora estejamos diante de mega transações econômicas e perdas também astronômicas dos bens capitais de Eric.

No percurso é que vamos sabendo de todos esses fatos; no percurso é que vamos desenhando a narrativa que tem possibilidade de sempre tomar um rumo diferente do imaginado pelas entradas dos funcionários (passageiros) de Eric que lhe dão as coordenadas do humor externo, seja do capital, seja das pessoas que lhe cercam.

Eric é uma ilha que tem tudo ao seu alcance, mas é domado por um vazio existencial: nada lhe preenche, tudo é mecânico, desde o deslizar do dedo nas telas de plasma, às refeições, aos diálogos, aos rituais médicos. Também é desse autodistanciamento social que ele funciona como uma espécie de luneta mágica que capta para si o esvaziamento da própria sociedade em que vive. As reflexões em torno da diversão costuradas num camarote de uma boate ou as reflexões em torno do páreo vida-morte quando tem, finalmente, um encontro com a possibilidade do rosto do seu assassino, são instantes de depuração filosófica que só são audíveis – no sentido de compreensíveis – pelo olhar atento do telespectador numa segunda ou terceira visão. É, pois, um filme que carecer de rever sempre. E a partir dele pensar sempre sobre um futuro que é presente.


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