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O mendigo Sexta-feira jogando no Mundial

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Por Mia Couto Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas, eu, velho e sozinho, o que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que freqüento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de espera, me vem a ilusão de me vizinhar do mundo. Os doentes são minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai, pai de todos meus pais. Desta feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira, me apresento hoje com séria e verídica queixa. Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu quando assistia jogo do Mundial de Futebol. Desde há um tempo, ando a espreitar na montra** do Dubai Shopping, ali na esquina da Avenida Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra para os pagantes contraírem ganas de comprar. Sento-meno passeio, tenho meu lu...

Nenhuma vida, de Urbano Tavares Rodrigues

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Por Pedro Belo Clara O escritor Urbano Tavares Rodrigues Nesta nova edição, retoma-se a debate sobre os trabalhos do autor referido em epígrafe com o intuito de dar a conhecer aquele que foi o seu derradeiro romance, concluído apenas poucas semanas antes da sua morte, em Agosto de 2013. Editado em Outubro passado, e com a particularidade de possuir um fac-símile fragmentado do original escrito pela mão de Urbano Tavares Rodrigues, Nenhuma vida é, nas palavras do próprio autor, um “romance breve ”  que, em quatorze capítulos, consegue ser transversal às principais ideias e temas defendidos por Urbano ao longo da sua existência terrena. Como obra, digamos, de “fim de vida”, e conhecendo o autor como a grande maioria do público português o conheceu, nada mais para além disso se poderia imaginar. Embora, sublinhe-se, em Urbano coabitavam pacificamente as linhas, firmemente desenhadas, de um pensamento nítido e interventivo com a gentil brandura de um trato - apare...

Campeões

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 Por  Ferreira Gullar © Márcio Petini Não sei quem terá escapado à atmosfera de alegria e pânico em que o Rio mergulhou  nestas últimas semanas com os últimos jogos da Copa do Mundo. Sem saber como nem porque, vi-me de repente de ouvido grudado ao rádio, submetido a uma tortura diabólica: era como se cargas de eletricidade (ou o que fosse) me entrassem pelo ouvido numa frequência poderosa e instável que ora me fazia suar frio ora estremecer de expectativa e apreensão. Vejo-me agora, de longe. Prometeu doméstico com um abutre a me devorar pelo ouvido. Eu mesmo ligara o aparelho de tontura, eu mesmo cuidava dele regulando cuidadosamente o volume e a clareza do som, e se qualquer coisa interceptava a transmissão e de deixava livre por um segundo, tinha ímpetos de arrebentar o rádio, porque eu queria ser torturado! Vivia o drama de quase 60 milhões de expectativa e apreensão. Vejo-me agora, de longe. Prometeu do Brasil. Confesso que há ...

Boletim Letras 360º #70

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Este é um fragmento de uma carta inédita de Charles Baudelaire. O poeta de As flores do mal era todo elogios pela frente de Victor Hugo, mas por trás era língua comprida para falar do  “ amigo ” . Mais detalhes ao longo deste boletim. Uma semana extensa; é o que leitor assíduo do Letras terá percebido entre postagens aqui e nas redes sociais do blog. Bom, o tempo está atípico e isso se reflete por aqui. De CHICO7.0 é possível vir ainda mais – apesar das homenagens de segunda até ontem com uma panorâmica por sobre a extensa obra do multiartista, Chico é Chico. Para a próxima semana ainda continuaremos lendo textos sobre o futebol de alguns dos nomes da literatura nacional e estrangeira. Isso irá durar até o fim do Mundial. Até lá dura também as inscrições para participação da  promoção Gol de Letra . Mas, vamos, também ao que foi notícia no nosso Facebook. Segunda-feira, 16/06 >>> Brasil: Mark Twain inédito entre nós É a primeira vez que uma ed...

Bolítica

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Por Décio Pignatari Há dez anos atrás, no começo da primavera, atravessei a Mancha rumo à Inglaterra, em companhia de um inglês e um israelense. Este lutara contra os nazistas, no exército de sua majestade britânica, e perdera as duas pernas dando combate aos árabes, nas lutas pela independência de seu país. Não era judeu – era israelense, fazia questão de frisar, mostrando um certo orgulho e uma certa irritação na necessidade que sentia de afirmar sua nova nacionalidade. O outro era um operário de volta das férias, velho e bem humorado militante do Partido Comunista inglês. Com não menor orgulho, exibia sua carteira de filiação, datada de 1935. No meio da travessia, a barcaça começou a jogar; o israelense não podia manter-se de pé, no convés: penoso demais. Ajudamo-lo a descer para o bar, com as suas três pernas mecânicas (uma sobressalente que carregava numa caixa) e voltamos para cima, o inglês e eu, rumo a um estranho bate-papo, entre solavancos ...

Narrador em amadurecimento

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Por André Albert Chico Buarque é compositor ou é escritor. Nunca os dois ao mesmo tempo. Cada livro novo é uma imersão numa rotina metódica. O confortável apartamento do Leblon, com uma magnífica vista que vai do Arpoador até Niterói, é trocado por outro, mais espartano, no andar de baixo. Lá é o retiro onde o escritor assenta os pensamentos que surgem em longas caminhadas pela cidade. Andarilho como quase todos os protagonistas de seus livros, Chico tem suas melhores ideias enquanto caminha pelas ruas cariocas ou de Paris, onde mantém uma segunda residência e para onde foge se é preciso apressar o passo da escrita. o final da tarde é o momento em que se senta para escrever. A atividade, às vezes, adentra a madrugada, num lento exercício de lapidação. Na opinião do amigo e também escritor Eric Nepomuceno, “uma espécie de Penélope que desfaz hoje o feito ontem, não à espera do improvável Ulisses, mas da palavra exata”. Obcecado pelos termos mais apropriados para o que quer ex...