Macbeth: ambição e guerra, de Justin Kurzel

Por Pedro Fernandes



Escrita entre 1605 e 1606, a peça integra o que a crítica comumente tem chamado de fase trágica de William Shakespeare. A história é já conhecida de todos: Macbeth é um general do exército escocês muito querido pelo seu monarca, Duncan, dada sua lealdade e seus préstimos guerreiros; em menor grau de importância, o amigo Banquo também o é. Na passagem de um dos confrontos, os dois são abordados por três bruxas que soltam as previsões as quais confirmam essa condição ora lembrada: “Macbeth será rei; Banquo é menos importante, mas mais poderoso que Macbeth; e os filhos de Banquo serão reis”. 

A confissão do acontecido à sua companheira, Lady Macbeth, uma mulher amargurada por não poder dar herdeiros ao general, e os incentivos dela na ambição pela realização do primeiro plano do enunciado pelas bruxas, impulsiona-o a realização do predito. Macbeth, então, trama a morte do rei e, movido pela necessidade de esconder a culpa, inicia um reinado baseado na perseguição dos que aos seus olhos podem, a todo momento atentar contra a Coroa.

Também não é a primeira vez que a peça ganha adaptação para o cinema; nas outras vezes foram nomes considerados gênios da sétima arte como Orson Welles, Akira Kurosawa e Roman Polanski. De modo que, qualquer releitura como a que agora se apresenta exige do cineasta um zelo e cuidado com o texto de Shakespeare, além, é claro, de um exercício de aguçada criatividade a fim de, se não suplantar os já clássicos, ressignificá-los. E foi Justin Kurzel quem assumiu essa responsabilidade que, logo adianto, mesmo sem ter visto todas as outras adaptações, faz uma atualização da obra shakespeariana a altura e marco para o início deste século. O Macbeth do cineasta australiano se impõe enquanto obra-prima do cinema e enquanto respeito pelo texto do mestre inglês, preservando, inclusive, nuances como a força linguagem explorada pelo bardo inglês.

Talvez esse zelo com o texto original esteja no desejo de apresentar aos dessa geração a força do teatro shakespeariano. E ao mesmo tempo em que usa da força metafórica e visceral do diálogo primitivo – com respeito à imposição das personagens e a integração dos monólogos sem distorcer o poder hipnótico da ação – Kurzel toca de maneira magnânima na atualidade dos temas evocados pela obra: um deles, o principal, já evocado logo no subtítulo da produção, a ambição.

Como o diretor consegue fundir a grande quantidade de monólogo ao corpo da ação? Primeiro, pela dinâmica dos atores – adendo à parte, sobretudo Marion Cotillard e Michael Fassbender, este mais que aquela – e, segundo, pela maneira como Kurzel planeja quadro a quadro as cenas, marcadas pela amplitude da composição e quando necessário, pela força do detalhe. Usa e abusa das simbologias, desde a luz à luminescência das cores; sobre esta última, vale citar o emblemático desfecho em cores vermelho-sangue. Isso significa dizer que não apenas o cenário – de forte traço teatral – mas também a fotografia, o recurso do cinema, é feita com a mesma dedicação com a qual a produção se aproxima do texto clássico. Isto é, Kurzel prima pela unidade e grandiosidade da obra.

Nesse curso, não se descuidará de incorporar resíduos de outras produções fílmicas – a composição das personagens no campo de batalha muito lembra Coração Valente e os efeitos em câmera lenta trazem traços das primeiras composições de 300 e, logo, a incorporação, sem exageros, das condições comuns dos chamados blockbusters. Se, por um lado, o texto pode afastar o espectador mais interessado no cinema como entretenimento, por outro poderá atraí-lo por essas tomadas. Kurzel equilibra-se na tênue linha entre o chamado cinema arte e o cinema comercial, sem gastar suas energias em fazer do clássico um pop.

Já a atuação de Fassbender é uma reverberação da frequência com que o tom do texto shakespeariano se assume: da força do homem leal e centrado, tal como se apresenta no início da trama, à fraqueza de quem se deixa tomar pela ambição, e sua destituição pelo desvario e a loucura. São três figuras cujas peças que lhe dão forma não estão estanqueis, são produto de uma relação entre elas, porque os traços de uma não se perdem na outra, se conectam e compõem quem é Macbeth: um herói de natureza complexa, como todos os heróis da tragédia, e indeterminada, como no caso de Shakespeare.

Kurzel não se esquivou de compor uma sinfonia de tons tão violentos quanto opressivos; não deixa de bebericar no barroquismo mágico de Orson Welles, mas prefere ser mais racional – vejam as cenas das bruxas ou o modo como faz a grande floresta de Birnam vir até o castelo. Não se fixa no tema da ambição como coisa solta, mas produtora de toda sorte de infortúnios, sobretudo a traição e a manutenção de uma culpa destruidora.

Não há mais o que dizer sobre o Macbeth, de Kurzel – e há, aos interessados em esmiuçar outros detalhes mais sutis, outros temas que só vendo repetidas vezes a obra se poderá apresentar melhor. Se não terá feito a melhor leitura do texto de Shakespeare, fez um filme para à medida desse tempo: sonoro e violento, humano e racional, real e não sem se guiar pelo que de imaginário aí se infiltra.  


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