Herberto Helder

Herberto Helder num dos últimos registros fotográficos. Alberto Cunha

Herberto Helder construiu ousadamente aquilo que mais rareia na literatura contemporânea. Fora toda exposição imposta pela mídia e todo apelo também imposto pelo mercado em torno do escritor fazer um nome e uma obra – ou por que não construir-se como mito. Provou a todos que ser escritor não é (e nunca foi) ser uma estrela do show business, que um escritor não pode estar submisso aos afagos do ego.

No fim da sua vida pode ser que a estratégia tenha caído nas graças do capital que via na reclusão do poeta uma possibilidade de trabalhar em torno da valoração da sua obra a partir da inacessibilidade e com isso tenha se exagerado ao limite de transformar sua opção fora do estrelato em produto.

A morte sem mestre – seu último livro – prova isso. Não estamos diante de uma poesia de excelência como a já praticada em títulos anteriores, mas o merchandising da tiragem limitada somada a uma aparição não em vida, mas em voz, levou a obra a esgotar-se em poucos dias e ganhar preços estratosféricos entre os vendedores de livros usados.

Mas, nada lhe tira o mérito de, numa época de obrigação midiática, escapar do apelo e ainda assim, construir uma obra, como já dissemos, fundamental para a literatura em língua portuguesa do último século. E isso não é ousadia apenas pela reclusão. É ousadia porque todo poeta (ainda mais português) tem uma tarefa nada fácil: construir uma voz que prevaleça entre um grupo muito significativo e heterogêneo. Bastaríamos citar o meteoro que foi Fernando Pessoa, para ficar apenas num nome de elevada envergadura. Não há comparações a fazer, mas, Herberto Helder aproxima-se do alcance que tem alcançado o poeta de Mensagem. Agora, é necessário esperar o tempo dizer sobre: se não terá sido apenas um poeta cadente.

Edição de Poemas completos, a obra que reúne toda poesia de Herberto Helder até A morte sem mestre (detalhe)

Embora, claro pareça consenso que não há depois de Fernando Pessoa nenhum poeta que tenha exercido um poder de atração e gerado tantas considerações em torno de sua obra. “Quem leu desprevenidamente os primeiros livros de Herberto, nos anos 60 e 70, há-de ter experimentado essa sensação de que a poesia só podia ser aquilo. Foi sempre esse o maior e mais estranho dom de Herberto Helder: convencer-nos (ainda que injustamente) de que escreve directamente em poesia, como se a poesia fosse a sua língua materna, e todos os outros poetas se limitassem a traduções mais ou menos conseguidas de um idioma perdido de que só ele detinha a chave” – sublinham Isabel Lucas, Isabel Coutinho e Hugo Pinto Santos num texto dedicado ao poeta e publicado por ocasião de sua morte, no dia 24 de março, no jornal português Público.

Antes d’A morte sem mestre, um livro que desde o título parece nutrir-se da certeza de que o fim se aproxima, editado em 2014, pela Porto Editora, Herberto havia publicado pela Assírio & Alvim, o livro Servidões (este título é o que assinala a explosão da sua poesia: cinco mil exemplares esgotaram-se em grande parte das livrarias portuguesas num curto espaço de tempo). Mas foi sobretudo com A faca não corta o fogo, publicado muito antes, em 2008, que se tornou um caso de consenso crítico quase absoluto. Herberto alcançou – aos poucos – uma posição próxima a de outros grandes nomes. Portanto, fez seu lugar muito demoradamente, distanciado de quaisquer modismos ou necessidade de aparecer. Tinha pelo verso vocação e não trampolim para um show business. A grande obra é cerzida no silêncio, à margem da balbúrdia. 

Dedicou das oito décadas vividas, grande parte à poesia. E, combinado trabalho minucioso e insistente não era de se esperar o contrário do que alcançou ainda em vida. O amor em visita publicado no fim dos anos 50 é seu livro, ou folheto como disse certa vez, de estreia. De lá para cá “criou um universo em permanente expansão e revisão, um poema contínuo constantemente reescrito. Cuja última formulação ficou agora irremediavelmente fixada pela sua morte nos recém-lançados Poemas Completos (Porto Editora, 2014), um título, aliás, algo desconcertante para quem nunca parece ter visto na sua obra uma sucessão discreta de poemas autónomos e fechados”, lembram os jornalistas do Público. Além do livro de 2014, revisou e deixou pronta, e deve, portanto, ser publicado agora 2015: Poemas canhotos.

Apesar do cuidado, da não-pressa e do delicado ao trabalho com a palavra, publicou muito. O tempo foi-lhe, digamos, generoso, para dar forma a uma genialidade imparável; foi, podemos dizer, um poeta prolífico, para não ficar aquém de uma característica dos escritores portugueses. Das mais de três dezenas de obras têm destaque os títulos Poemacto (1961, no mesmo ano em que publicou A colher na boca), Lugar (1962), Electronicolírica (1964), Húmus: poema-montagem (1967), Retrato em movimento (1967), O bebedor nocturno (1968), Vocação animal (1971), Poesia Toda (primeira antologia que reuniu a revisão de sua obra completa cuja edição primeira é de 1973, mas repetiu-se em 1918 e 1990), Cobra (1977), O corpo o luxo a obra (1978, um dos poucos títulos de sua obra no Brasil), Photomaton & Vox (1979), Flash (1980), A plenos pulmões (1981), A cabeça entre as mãos (1982), As magias (1987), Última ciência (1988), Do mundo (1994), Ouolof (1997), entre outros.

Gastão Cruz contraria que os textos de A morte sem mestre, nesse curso de importantes obras, seja menor; a última poesia de Herberto era de uma grande força verbal e mantinha uma ligação profunda com o que sempre foi a poesia dele, uma poesia de um poema único. O poeta relembra o ensaio de António Ramos Rosa “Herberto Helder – poeta órfico”, onde este diz que Herberto Helder “é um poeta visionário e um poeta órfico da estirpe de um Hölderlin ou de um Rilke”. A sua poesia “cruza o modernismo e o surrealismo com algumas coisas dos poetas do romantismo alemão”, mas há nela “uma intensidade própria” que Gastão Cruz associa a algo que o poeta um dia lhe confidenciou: “Disse-me que a poesia dele parte da tragédia pessoal que foi a perda da mãe aos oito anos”.

Duas edições de Poesia experimental, marco na literatura portuguesa.

A aproximação com o surrealismo se dá quando da publicação de seu primeiro livro de poesia; na época, a convivência com nomes como Mário Cesariny, António José Forte e Luiz Pacheco foram determinantes. A dedicação à poesia possivelmente nasceu nesse interior de um surrealismo tardio, mas alimentou-se, desde sempre, de uma forte dose experimental – na década de sessenta ele chegou a organizar com António Aragão o Primeiro caderno antológico de poesia experimental, título considerado um marco na história da poesia portuguesa.

E a convivência com as letras terá se ampliado pela formação em Letras na Universidade de Coimbra, depois do curso de Direito; depois do trabalho como jornalista, bibliotecário, tradutor e redator (da revista Notícia, em Angola, e da revista Pirâmide). Antes disso, já havia publicado poemas esparsos em antologias como Arquipélago (1952) e Poemas bestiais (1954) e periódicos como a revista Buzio.

Carlos Fernandes, Troufa Real e Herberto Helder. Corimba, Luanda, setembro de 1971


Muito antes de arrancar unanimidade entre a crítica, o primeiro livro de 1961, publicado então por uma editora que editava nomes como o próprio Fernando Pessoa e Ruy Belo (no mesmo ano), a Ática, foi lido então como uma grande aposta da poesia portuguesa; não foi profecia barata, vê-se. Nesse período, Herberto vivia do que lhe aparecia e viajou pela França, Holanda e Bélgica, como operário metalúrgico, empregado numa cervejaria, cortador de legumes numa casa de sopas, guia de marinheiros em Amsterdã e empacotador de aparas de papel.

As funções de bibliotecário e jornalista desempenha depois dessas andanças. Pouco tempo depois, também como editor, vai trabalhar na Estampa e publica a obra de Almada Negreiros, pela qual tinha grande admiração. Depois disso, é anos setenta, e volta a viajar pela Europa até ir para África; o retorno a Lisboa se dá depois de sofrer um grave acidente de aviação que quase lhe custa a vida. Na volta, decide que deixará de escrever, o que dirá mais vezes ao longo da carreira. Mas, das vezes que disse isso, dava início, contraditoriamente, aos períodos mais criativos de sua carreira literária. E as pausas acontecidas terão sido entre o instante de reescritura da sua obra, o que levou quase uma década e meia.

Foi um poeta que recusou honrarias; a mais alta delas, o Prêmio Fernando Pessoa em dezembro de 1994. Tantos anos depois, os membros do júri, que sabiam da recusa de Herberto Helder, lembram que o poeta fez um pedido: "Não digam a ninguém". E ninguém tinha telefone nem sabia bem onde encontrá-lo para, mesmo sabendo da resposta, anunciá-lhe da honraria. E honrarias não aceitas, o que o poeta deixou-nos foi uma obra necessária. Ler Herberto Helder findará por ser a melhor das honrarias. 

Ligações a esta post:
>>> Pedro Belo Clara e uma leitura sobre Os passos em volta.
>>> No nosso Tumblr um conjunto com seis fotografias muito recentes de um ensaio pelo fotógrafo Alberto Cunha.

A seguir preparamos um catálogo com material exclusivo sobre Herberto Helder: inclui uma autoentrevista, datiloscrito de um poema censurado pela Ditadura, manuscrito de uma carta enviada a Eugénio de Andrade e cópia fac-similar de um poema editado na Revista Pirâmide.






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