Virginia Woolf: “o som da tinta em efervescência”

Por Emma Rodríguez




“A literatura é a arte a que dedicamos nossas vidas”, dizia Virginia Woolf referindo-se a ela própria e a outros escritores completamente entregues à tarefa de construir ficções. A autora de Um teto todo seu é uma das protagonistas deste itinerário que aqui começa sobre as rotas criativas, as escritas e leituras de um grupo diverso de autores, de ontem e de hoje, clássicos e modernos, que têm em comum a reflexão sobre seus processos e motivações da criação literária, sobre o sentido e o alcance de um labor que escapa a qualquer tipo de classificação, de convenção, por sua natureza inapreensível.

O que pensava Woolf de si mesma? Como Flaubert enfrentava o mundo? Que impulsos motivavam a Cortázar? São algumas das perguntas que podemos responder através dos seus testemunhos em cartas, diários, conferências, aulas, que eles nos deixaram. Em que fontes bebe hoje o escritor argentino Ricardo Piglia? De que maneira elabora suas próprias experiências e compartilha suas conquistas e um autor tão fronteiriço como Hanif Kureishi? Suas obras são cheias de revelações, chaves de leitura, confidências.

Imaginemos a folha em branco, a tela do computador vazia antes de começar a encher-se de palavras. Imaginemos a luta com as imagens, as contradições e convicções, a cabeça cheia de ideias que nem sempre se concretizam. Pensemos na mão que lentamente vai ganhando segurança, os personagens tomando postura sobre o tabuleiro e levantando a tela de uma realidade paralela. Recriamo-nos como destinatários de sonhos e passeios por cidades irreais.

E sejamos leitores ou escritores, como nos disse Cortázar, “vamos à literatura como se vai aos encontros mais essenciais da existência”. A partir dessa paixão empreendemos esta viagem que nos conduz a cinco destinos, a cinco escritórios, laboratórios, cozinhas de criação. Onde estão os protagonistas, em que cenas de suas próprias obras. Convertemo-nos em voyeurs, em testemunhas privilegiadas, talvez em alunos aplicados, porque está em nossa mão decidir o ângulo através do qual nos aproximamos de seus territórios particulares, a esses espaços de intimidade cujas portas entreabrem para que possamos ver, entender um pouco a luta com as palavras, com os sentidos, com as maneiras de contar-se, de contar o mundo.

*

Escutamos “o som da tinta em efervescência” (que belíssima metáfora) no próprio quarto de Virginia Woolf. Vemos a escritora debruçada sobre cartas, lendo e escutando o som da natureza que rompe o silêncio e a inspira. Imaginamo-la em absoluta solidão buscando o ritmo adequado para construir suas emoções, sentindo a euforia do trabalho que avança ou o tédio dos dias improdutivos, esses dias em que não se é capaz de penetrar em seus próprios gritos, de arrancar capas da própria crosta que oculta os mistérios da existência.

“Deus, Deus meu, quantas coisas carecem de outras, quão torpes e inexperientes somos, todavia não aprendemos o truque da vida, não temos conseguido descascar essa laranja ao certo. Já lhe disse que não estou com humor para escrever [...] Por enquanto escrevi uma página inteira e ainda não lhe disse nada”, confessa a escritora numa das cartas a Gerald Brenan. Está sentada junto à lareira de sua casa em Monks House, como tantas outras vezes, e segue refletindo: “Tudo parece bastante incerto e infinitamente enganoso: há tantas afirmações vazias, tantos truques de linguagem. E sem dúvidas é a arte a que consagramos nossas vidas”.

É um prazer absoluto ter acesso às atmosferas, aos anseios e frustrações de uma escritora essencial na literatura contemporânea. É uma experiência ante a qual todo leitor ou leitora que ame seus livros não pode sentir se não agradecimento. Seu legado, seus diários e cartas, nos permitem conhecê-la muito de perto, sondá-la, embora a autora de Orlando não deixe de ser um enigma, do mesmo modo que o enigma dá forma às suas narrativas.

Cito como interessante um guia produzido por Federico Sabatini (ver nota no fim da post), professor de Literatura Inglesa na Universidade de Turim, que copia uma ampla mostra dessas cartas em que Woolf reflete sobre o ato de escrever e se mostra como uma mulher convencida de que seu destino está no jogo com a palavra, na busca de seus ritmos interiores, no registro das emoções mais recônditas.

“Virginia Woolf, ao contrário de outros escritores de seu tempo, se converteu com os anos num verdadeiro ícone (...) Seu prestígio seguiu crescendo com o tempo tanto no meio acadêmico como entre o gosto popular. Junto com seu comovedor suicídio, há múltiplos fatores que terão contribuído para que tenha sido considerada um ícone: foi uma mulher que, apesar de sofrer episódios de uma enfermidade mental grave, conseguiu escrever uma quantidade assombrosamente vasta de ficção e de crítica literária; alguém que, apesar de sua frágil sensibilidade, teve sua fortaleza de expressar abertamente suas próprias opiniões e de se colocar com firmeza na cultura de seu tempo e entre a tradição literária que a precedeu. E, por fim, uma escritora valente que, com seu companheiro, foi capaz de fundar sua própria editora para poder desfrutar de uma completa liberdade de expressão”, assim a retrata Sabatini.


Virginia Woolf


Todas essas características de seu caráter são percebidas enquanto vamos relendo as correspondências que enviou aos seus interlocutores e amigos, aos seus cúmplices no ofício da ficção. O organizador da antologia acima referida nos convida a observar uma vez mais a famosa fotografia da escritora feita por George Charles Beresford (do conjunto de imagens acima), uma imagem em que ela aparece como uma pessoa etérea, refinada e vulnerável, para citar as palavras de sua biógrafa Hermione Lee. Sem dúvidas, essa vulnerabilidade contrasta com sua fina ironia, com sua exigência e forte sentido crítico sobre sua própria obra e a dos mais próximos.

Com seus pudores e, por vezes, atormentada, irreverente e original, Virginia Woolf aparece ante nossos olhos como um ser contraditório, sempre lutando entre os lados de sua personalidade diversa: o desejo de solidão e a necessidade dos outros; a ânsia de mostrar-se frente ao desejo de esconder-se atrás de si mesma. Virginia não esconde em nenhum momento sua batalha por alcançar criativamente algo que sempre lhe escapava. Esse era seu desafio, nadar até a outra margem, a inacessível.

“Creio que quando alguém começa a escrever um romance o mais importante não consiste tanto em sentir que pode escrevê-lo mas o que existe do outro lado de um abismo que as palavras não conseguem alcançar. Algo que só se conseguirá com uma angústia sem alento (...) Para um romance ser bom, antes de escrevê-lo tem que parecer algo impossível de escrever, meramente algo visível”, diz Virginia a também escritora Vita Sackville-West. Noutra carta se pergunta: “Como vai ser belo o que escrevo? ”.

Essa interrogação dá lugar a uma peça essencial sobre a literatura de Woolf; ela responde a pergunta a outra de suas confidentes habituais, Ethel Smyth: “Abordarei o tema da beleza e quebrarei o êxtase ante a defesa que faz de mim como escritora feia – que é o que o sou – mas também honesta, impulsionada como uma baleia sem fôlego que chega à superfície para tomar ar. Tais são o esforço e a angústia que supõem encontrar uma frase (que diga exatamente o que quero dizer). E logo dizem que o que escrevo é belo! Como vai ser se sempre estou tentando dizer algo que nunca tenha sido dito, e que essa primeira vez deve dizer-se com toda exatidão. Assim renuncio à beleza e a deixo como legado para a próxima geração”.

As alusões à angústia, ao tormento que é explorar, buscar, bem como a disciplina necessária, a ferro, no processo de criação, são constantes em Virginia Woolf, consciente de que os mundos que saíam de sua pena, com suas geografias, com seus personagens, não aliviavam a miséria da vida nem a faziam mais feliz, mas também de que, ao longo de sua trajetória, tudo havia sido inclinado, sem remédio, para a literatura. De suas aflições, de seus vai-e-vem emocionais, ela torna Gerald Brenan um de seus participantes ao lhe escrever uma dramática carta datada de 1922 em que lhe diz que, ante os “recorrentes cataclismos de horror” que acompanham a existência, há que optar por transformá-la, afrontá-la, repudiá-la, “e logo voltar a aceitá-la nos justos termos e com paixão”.

Cheia de matizes, reflexo sempre sobre seus estados anímicos, as cartas de Woolf estão cheias de melancolia, mas também de momentos de alegria, de plenitude. “Não lhe ocorre que quando escreves o mundo desaparece, salvo essa parte concreta que te serve para escrever, de fato, se mostra indecentemente nítida?” – pergunta em outro momento a Ethel Smyth.

São muitas as descobertas que encontramos no livro de Sabatini, uma sugestiva porta de entrada que conduzirá, sem dúvida, aos mais interessados, a outros volumes mais extensos de suas cartas e diários. A imagem que encontro de Virginia é a da escritora obsessiva e perfeccionista, uma incansável caçadora de sensações, e também uma leitora exigente que não hesita em criticar Stevenson ou Joyce, a quem acusa de ter escrito um “chato” Ulysses.

Tampouco se importa reconhecer sua vaidade, manifestar aos céus o que sente ante os contos de Katherine Mansfield ou sua admiração por Colette. Sobre o mítico grupo de Bloomsbury diz que é, em grande parte, “uma criação dos jornalistas” e no que se refere aos livros que lê, são muitos e diversos mas valoriza os que a impulsionam pensar. “Fiquei metida em minha poltrona com teu livro aberto, e de tuas palavras sai tanto resplendor que não posso fechar-me nelas (...) É a magia que me distancia da compreensão”, escreve a T. S. Eliot sobre uma parte de seus poemas.

A Virginia Woolf leitora e crítica pode ser malévola, discordante e também generosa. Seus medos e suas filiações (admirava Shakespeare, Milton, George Eliot, Proust, os clássicos gregos...) estão para ser descobertos em suas cartas, entre as que também abundam as destinadas a oferecer conselhos a outros autores que lhe enviam seus escritos, suas publicações. Federico Sabatini destaca que “nunca se mostrou condescendente ou possuidora de verdades absolutas”, que o que sugeria e compartilhava sempre “era simplesmente sua luta literária, o que pensava que valia a pena explorar”. Essa luta preenche tudo.

Bem, recuperamos a escritora através de suas cartas, a trouxemos ao presente, e já agora deixamo-la desfrutando da leitura. “Estou profundamente imersa nos livros (...) Apaixona-me tanto a leitura que às vezes penso que é como a outra paixão, a escrita, nada mais que o reverso do tapete”, disse certa vez à sua amiga Ethel Smyth.


Notas:
O livro a que se refere a autora é Virginia Woolf: spegnere le luci e guardare il mondo di tanto in tanto - reflessioni sulla scritura e não tem tradução no Brasil até o momento.

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