A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa


Por Rafael Kafka



Afinal de contas o que é Canudos? Essa é uma pergunta muito repetida, de forma explícita ou subentendida, no magistral romance de Mario Vargas Llosa A guerra do fim do mundo, livro que pela complexidade do tema político deveria realmente ser escrito por alguém como Llosa. Outrora marxista, o autor de Conversas no catedral é hoje em dia um dos grandes expoentes do pensamento liberal conservador e acredita profundamente que a democracia liberal é a chance que temos enquanto sociedade de garantir dignidade e liberdade a todas categorias e classes sociais.

Sendo um caleidoscópio ideológico interessante, Llosa possui uma obra também cheia de textos multiplanares os quais funcionam como fluxos de consciência a misturar passado, presente e futuro em temas repletos de dimensões políticas tortuosas. O romance citado por mim no primeiro parágrafo é um belo exemplo disso, bem como outras obras como A casa verde e A festa do bode. Llosa é um autor cujo objetivo é captar em todas as perspectivas possíveis fatos sociais relevantes para a nossa cultura latino-americana, transitando bem em temas como ditaduras militares em países como o Peru e a República Dominicana ou um conflito político que demonstra toda a opressão existente mesmo por trás de ideias ilibados como a defesa da democracia.

Aliás, impossível ler esse romance e não lembrar dos ensaios de Noam Chomsky em seu O poder americano e os novos mandarins, lidos por mim há alguns meses. Chomsky mostra, dentro de um contexto político diferente em tempo e espaço – o Vietnam da metade do século XX – como Estados autoritários podem usar a seu favor um discurso de defesa da liberdade enquanto bombardeiam sem dó pessoas inocentes. O aparato ideológico e o repressor andam bastante juntos em momentos como esse.

O que torna Canudos tema interessante para a caneta de Llosa é o caráter ambíguo que parece travar até mesmo a escrita do Prêmio Nobel de literatura. Por mais que o livro seja de qualidade, não sentimos aqui o mesmo Mario Vargas arrojado e fluido de Conversas..., livro que aborda de certa forma o processo de (de)formação do jovem Santiago em um niilista, algo que pode ser reflexo do percurso intelectual do autor. Não é falta de competência, creio eu, e sim o enfrentamento de um tema difícil, complexo, profundo e que tanto para as personagens quanto para o romancista parece não se encaixar perfeitamente na linguagem cotidiana.

Canudos é um fenômeno que surge com a figura messiânica de Antônio Conselheiro, ser que aparece repentinamente na vida de uma série de pessoas das mais variadas extirpes que decidem segui-lo por aí com seu discurso antirrepublicano e escatológico. Jagunços, fratricidas, comerciantes, mártires, artistas circenses, toda uma gama de seres marginalizados se depara com Conselheiro e passa a viver com ele em Canudos, uma fazendo pertencente a um ex chefe político importante da Bahia, o Barão de Canabrava. Este e seus rivais do partido republicano durante muito tempo no romance acusam-se de financiar o movimento e aos poucos ambos os grupos políticos – os defensores da república e os saudosistas da monarquia – começam a entender que a sua visão do fato social o qual é Canudos é limitada demais.

Não consigo precisar bem esse romance na biografia política de Mario Vargas Llosa e se há nele uma forma de defesa, por meio do discurso indireto livre, da crítica à limitação da dicotomia esquerda/direita para entendimento dos debates presentes em nossa sociedade ocidental. Mas parece haver algo disso no romance. Llosa, aliás, passa longe de ser um isento e seu liberalismo é algo empunhado com muito orgulho em livros como A civilização do espetáculo, o que o coloca longe daqueles que consideram a dicotomia falha atacando apenas um dos lados do espectro político mais grosseiro, em especial os defensores da justiça social.

O fato é que Canudos é visto como um movimento financiado pelos inimigos da república em alguns momentos e em outros chega a ser visto como movimento pró republicano com intuito de sabotar as posições dos autonomistas, os já referidos saudosistas da monarquia. Boatos que hoje viralizariam fortemente na forma de grotescas fake news afirmam que o movimento é sustentado por membros de outros países, como a Inglaterra, e mesmo um amante das ideias revolucionárias, Galileu Gall, vê em Canudos um panteão de contextos políticos provocadores, pulsantes.



Gall é talvez quem veja tudo de forma mais razoável, pois não faz asserções fechadas sobre o culto em torno do Conselheiro e sim perguntas sobre como posições de mudança social se conectam a uma religiosidade intensa. Temos diante de nós, então, a religiosidade clandestina que marcaria presença no discurso político e fílmico de um Glauber Rocha, uma religiosidade que não é ópio do povo, mas um instrumento de rebeldia e de mudança social, mesmo que sem entender as microvilosidades do poder político.

Conselheiro volta sua fúria contra a república por ela garantir a separação entre Estado e igreja. O poder republicano é o anticristo e o século XIX acabando era para os fieis conselheiristas um sinal claro de escatologia. Todavia, ao lado desse conservadorismo, há o discurso da justiça, a defesa de algo que hoje chamaríamos facilmente de reforma agrária, do combate à ganância dos poderosos. Todo esse discurso, perigoso por si só, torna-se ainda mais provocativo pelo fato de Canudos ser terra do Barão de Canabrava, chefe monarquista, e pelo fato de várias expedições do exército brasileiro não conseguirem vencer a caatinga e a força do exército conselheirista com todo seu hibridismo revoltoso.

Na narrativa de Llosa, tudo parece turvo e Canudos é vista como uma grande paisagem imprecisa. O próprio Antônio Conselheiro não é visto pelos soldados em nenhum momento da história e após o surgimento repentino e cheio de efeito ele deixa aparecer até mesmo para os leitores da obra. Esse efeito turvo, dos conflitos que parecem que vão revelar profundas sanguinolências, mas em verdade revelam cenas que se perdem na poeira calorenta da caatinga, reforça o caráter ambíguo de Canudos e tantos outros movimentos sociais que nós tentamos prender a bandeiras partidárias ou de esquerda/direita. Canudos é provocante por ser um movimento genuíno a mexer com elementos profundos como a fé, a fome, a miséria e a revolta num tipo de práxis o qual não podemos entender com nossas noções por demais academicistas quase sempre.

O realismo mágico de Llosa se encaixa perfeitamente bem com esse enredo, mostrando como a obra do peruano é muito boa em mesclar a realidade e a ficção, fazendo com que pensemos que a primeira nada mais é do que um lastro de nossa existência para a qual usamos uma fina camada de linguagem para nos guiar. O absurdo do existir é que a fala e a escrita não bastam para dizer o que somos e porque somos e sempre estamos aquém e além do verbo. Porém, ainda assim, insistimos em falar e escrever e estamos a todo instante ultrapassando-nos e a nossas percepções de nós mesmos sem que percebamos isso.

Canudos é uma situação-limite do ponto de vista social a expressar a insuficiência verbal que marca nossos seres. Canudos existiu de um jeito já registrado por Euclides da Cunha – e aqui confesso uma falha terrível: nunca li o clássico fronteiriço de nosso naturalismo e modernismo – e por isso Llosa decide usar o aspecto turvo da invasão da fazenda do Barão de Canabrava para contar uma história grandiosa que não nos sentimos tentados a questionar se foi daquele jeito mesmo ou não. Porque no final, a realidade é tão imprecisa e tão imensa para nossos desejos de expressão que ela, por si só, já é ficção, já é algo que não sabemos definir se existe realmente.

Comentários

Ana Vargas disse…
Confesso que partilhei todas essas perplexidades. Mas tudo o que aconteceu em Canudos pode acontecer agora - está acontecendo agora. É fácil manobrar gente pobre e revoltada e subverter os valores. Também em Portugal tivemos revolta de populares contra situações politica, social e economicamente mais justas. Foi numa destas situações que se iniciou a que ficou conhecida por revolta da Maria da Fonte - iniciada pela proibição de enterros nas igrejas por questões sanitárias.
Este livro confunde-nos por isso. Quando somos pequenos perguntamos quem são os bons e quem são os maus. Aqui torcemos pelos maus ou pelo menos pelos bons que estão do lado errado.
https://leiturasemclube.blogspot.com/2018/01/a-guerra-do-fim-do-mundo-mario-vargas.html
Dolores disse…
Estranho uma crítica sobre tal obra feita por alguém que não leu Os Sertões.
Vitor Yeung disse…
Desculpe trazer à tona um post tão antigo. Mas gostaria de sugerir uma releitura do personagem Galileu Gall. Acho que é nele que está a crítica mordaz do Llosa aos teóricos cientificistas.
Unknown disse…
Concordo com o que ja foi dito anteriormente.
A crítica perde toda a credibilidade quando se assume que não leu Os Sertões.
Jose Reis disse…
Concordo c/ os amigos que destacam a análise feita por alguém que não leu Euclides da Cunha!! Uma obra magistral, onde ele não só aborda "A Guerra de Cabudos", mas primeiro explica c/ sua visão geológica, a razão das terras nordestinas serem áridas e sobre esta aridez, as etnias que a povoaram. A Guerra é uma combinação destes dois fatores !! Vargas Llosa, narrou este episódio c/ outro olhar, mas tb como uma reverência a Euclides da Cunha, que ele lia desde menino!!!

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