George Orwell, a verdade está fora das redomas de poder

 Por Pedro Fernandes

George Orwell, 1946. Foto: Vernon Richards.


Passado o século dos grandes totalitarismos, conseguimos acreditar que na democracia como um sistema se não o mais seguro para as liberdades individuais e coletivas o mais representativo e coerente. É possível que a segunda possibilidade ainda se sustente enquanto valor indelével; a primeira, entretanto, para os mais céticos, nasceu caduca. E reside nela algumas linhas fundamentais para o debate sempre adiado enquanto ainda for possível revisar o sistema, aperfeiçoá-lo em direção ao que se propõe. Mesmo que os rumos tenham sido alterados para o impasse e mesmo sua falibilidade, fora do ideal democrático ― já sabemos ― tudo é sempre pior.
 
Agora, o levantamento do capitalismo predatório deixa sempre à mostra que as representações de poder não passam disso, no pior sentido do termo, são falseamentos de poder, uma vez as regras do mando evoluírem num tabuleiro nem sempre às vistas da sociedade. Sua visibilidade, aliás, começa a partir de quando se revelam mais nitidamente os acordos tácitos de gabinetes assinados quase sempre em favor da corrupção para benefício próprio dos jogadores. E, junto com esses trânsitos de bastidores a descoberta de que a verdade, esse termo tornado símbolo jurídico no juramento ético para a conduta do eleito no poder, é pura e simplesmente uma peça rude nos disfarces.
 
Agora que habitamos uma Era da Crise ― talvez o gesto mais audacioso perfeitamente favorável a um capitalismo que se metamorfoseia a cada passo coletivo e individual e se renova e se recria sempre mais feroz ― sabemos que a democracia não está salvaguardada numa redoma como pareceu acreditar os mais agarrados na eterna repetição dos rituais sociais. É possível que seja um pouco tarde para encontrarmos a saída sobre os impasses do sistema e voltemos a atravessar outra vez o grande círculo de trevas, parecido e diferente dos que já atravessamos. E a dissolução da verdade como objeto circunscrito no âmbito dos grandes pilares dos estados modernos porque derivado de instituições tão sólidas quanto a História e a Ciência, acelerada, em parte com uma nova renascença do ponto de vista individual alastrado nesse instrumento que podemos designar como o cavalo de troia dos sistemas democráticos, as redes sociais, junta-se aos agravantes que colocam em desfazimento quaisquer perspectivas de saída por fora do mal conhecido.
 
O pior do nosso tempo não é o reconhecimento das crises, da remodelagem dos estamentos de uma tradição ― as duas coisas são parte em quaisquer sociedades em progresso. O pior do nosso tempo é a paralisia entorpecente de todos os sentidos ou sua não-confluência que nos impossibilita a saída possível. E não se fala aqui sobre uma fuga, sem enfrentamento dos nossos dilemas, coisa que aliás nos empurrou para o lugar onde nos encontramos; fala-se de uma revolta capaz de uma alternativa que ignore o que no sistema vigente se fez pior em nós: a elevação do indivíduo, dos interesses próprios e o escravismo do consumo, isto é, a plena dominação da força capitalista sobre a contínua falta que nos acompanha desde a origem remota de nós mesmos. Uma alternativa capaz de romper com a Babel das aldeias democráticas, com grupos muito atentos aos seus próprios interesses mas incapazes de falar em nome de um projeto coletivo, instaurando todo tipo de formas de conduta que impulsionam forças para lados diversos, às vezes permissivas ao fortalecimento daquelas que julgávamos definitivamente sepultadas depois do último campo de concentração ou do último gulag.
 
Quer dizer, este início de século tem nos colocado de frente com os nossos piores fantasmas e sabemos bem que estes nunca deixaram de existir, nem deixarão e que é parte da existência a contínua luta por uma alternativa capaz de continuar outros ânimos que não o bafio tempo dos unilateralismos ideológicos. Por mais que estes, de uma maneira geral, encontrem-se afetados pelas crises ― nada é mais sadio nos tempos que correm ―, continuam a gozar de um privilégio: sua capacidade de se infiltrar nas massas por aquilo que em parte as determinam, seja o ponto de vista individual e invariável, os resquícios de uma tradição mal-ajambrada e, claro, um desprezo pelo que coletivamente construímos, afinal, o trabalho intelectual é sempre mais oneroso que o lugar-comum. Ignorar é quase elemento inerente da natureza humana, sobretudo quando o que se passa não nos atinge ou puramente ― numa espécie de sedução com a morte ― porque não podemos aceitar a derrota pelo engano. Ao dizer isso, o leitor pode se perguntar sobre o que é a verdade, como encontrá-la e mantê-la, qual é seu papel numa organização social, ou ainda se existe mesmo uma que se chame universal e, se não, como fazer convergir as múltiplas verdades para um bem-comum.
 
Não há um lugar onde encontrar a verdade, simplesmente porque ela não é algo fixado, mas participa do movimento contínuo da história, logo, o próprio organismo social dela depende. Se é impossível determinar a morada da verdade, não se pode dizer o mesmo sobre os lugares onde não a encontrar. E estes são os lugares de poder; por isso, é válida a compreensão de que numa sociedade democrática um povo jamais deveria ser o ponto de pura reafirmação do poder eleito, mas o ponto de inflexão. Isso significa que só conseguimos buscar a verdade se pelo princípio do questionamento e esse lugar é o de fora, jamais o de dentro.




Ao dizer isso encontramos o exemplo de George Orwell; profundamente descrente dos poderes de domínio, ainda mais quando a humanidade descobriu os horrores do nazismo e do comunismo, sua posição foi sempre a do cidadão em espreita, ao redor das redomas ideológicas e atento a uma possibilidade de renovação crítico-criativa do indivíduo contra os sistemas que se propunham seguir cartilhas sectárias o suficiente para desprezar o discordante ou mesmo um interesse genuinamente popular. Parece então que apenas assim é possível manter a verdade. Esta é, por assim dizer, um estágio contínuo de lucidez ― para acrescentar um termo tão caro ao autor de A fazenda dos animais. O estágio em alerta é o de permanecer-se consciente ante o seu entorno.
 
Exceto àqueles conceitos fossilizados porque irrefutáveis ― como a terra é redonda ou que toda ditadura é sangrenta e má ― resultará sempre a possibilidade de se modificar determinadas condições, principalmente de verdades em curso. Assim, há verdades e verdades e é sempre possível fazê-las convergir, quando múltiplas, para um bem-comum. Isso significa dizer que quando não, quando dela nos utilizamos para atingir propositalmente o outro em nome de meu ódio próprio ou do meu ponto de vista, tem-se um sério problema. Um exemplo muito claro pode ser utilizado a partir do nosso contexto. Há uma variedade de trabalhadores da ciência que começaram do instante zero a buscar uma solução capaz de salvar parte do ajuntamento humano de uma doença mortal; o resultado desse trabalho implicará numa responsabilidade coletiva dos demais em reconhecer esse esforço. À medida que esse mesmo ajuntamento se dedica ao desprestígio dessa frente de trabalho seja por alguma verdade torta ou mesmo o gratuito senso comum, toda uma ordem é colocada em risco e junto com ela se repisa uma crise de sobrevivência do coletivo.
 
Ora, tudo isso serve para dizer que a antologia organizada por David Milner a partir da obra completa de George Orwell com o sugestivo título Sobre a verdade não é um Livro Vermelho, feito de absolutismos. Aqui encontramos os múltiplos caminhos que levaram o escritor a perseguir as verdades de seu tempo ou como ele próprio foi-se modificando ou modificando sua leitura sobre a verdade: muitas delas universais e atuais, como aquelas veredas sobre a política, os sistemas de poder e o papel dos intelectuais na sua tribo.
 
É um tanto sagaz o tratamento do antologista porque colocou em relevância uma questão recorrente num escritor que descreveu o que até agora é o claro modelo de uma sociedade com limites invertidos (muito tênues, por sinal) da verdade ― em 1984. E, melhor, aproximou isso ao papel do intelectual, uma vez que esta antologia privilegia todo arco bibliográfico de Orwell, o da sua literatura e o da sua intervenção mostrando-nos um cidadão no papel esperado de todos nós: em desconfiança das ideologias. Ou seja, a verdade, é um termo que une o escritor que conhecemos e o homem nem sempre compreendido por todos.
 
Continuamente, Orwell foi descrito como um anticomunista; por sua vez, também o acusam reacionário. As duas acusações guardam implicações muito delicadas que só agora começam ser repensadas. E o que podemos adiantar é que as determinantes parecem dizer um pouco de sua condição: o de fora dos modelos de domínio. Sobre a verdade também finda por questionar essas características demonstrando-nos que sempre são sugestivas, reducionistas e alimentadas pelo pensamento mergulhado no véu das ideologias.
 
Uma síntese que parece importante ao leitor que for atravessar esse pequeno compêndio de textos é dada muito acertadamente por Alan Johnson, no texto de prefácio da antologia; diz: “Ele era um pensador político que jamais teve medo de adaptar suas ideias às novas circunstâncias, em vez de tentar submeter tais desenvolvimentos à rigidez de seu pensamento.” E acrescenta: “O objetivo dele não era converter os incrédulos, mas defender o socialismo democrático contra os ataques da esquerda e reconquistar do comunismo os ‘companheiros de viagem’”. Uma leitura que encontra respaldo no próprio escritor, quando afirma: “Toda frase séria que escrevi desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como o entendia”.  Ao que parece, a chave para o nosso tempo está conosco. Usemo-la.
 

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