Vestígios de um tempo de dor

Por Tiago D. Oliveira



 
Ao voltar para o lugar onde viveu a sua juventude com todos os arroubos que a memória fornece para o tempo, um agente do sistema de informações passa a administrar uma empresa de segurança em um bairro paulistano e vai reencontrar seu passado em alguns rostos que fizeram parte de um tempo que insiste em reaparecer.
 
O Brasil estava mergulhado num período em que os militares tomaram conta do país e a violência se instaurava sem sinal algum de que sairia de cena. Jornalistas, operários, militantes, dirigentes políticos, a tortura era a ferramenta principal de um método que quase sempre culminava com desaparecimentos. Os militares tomaram o poder e afirmaram que a democracia retornaria aos poucos para o Brasil, mas o que realmente aconteceu foi uma indiscriminável onda de assassinatos e ações violentas.   
 
Vestígios. Mortes nem um pouco naturais, de Sandra Abrano, editado pela Bandeirola, é um thriller político que se passa em São Paulo no ano de 1976 e se estende até os anos 2000. A autora utiliza fatos recentes da história brasileira para criar uma narrativa que apresenta imagens dos governos militares que subtraíram tanto do Brasil de um passado que é ainda vivo. Sandra cria um cenário em que Mário Aleixo de Alencar Teles reencontra outros personagens que foram agentes de uma época quando a liberdade era luxo e o desaparecimento, a palavra mais utilizada diariamente. Desaparecimentos de estudantes, militantes políticos e tantos outros excessos que jamais serão esquecidos pela memória de um país ainda acometido pelo torpor das piores lembranças.
 
Uma das formas de entendermos a formatação política do Brasil é também dedilharmos o toque sobre esse período. Foi o que fez Sandra ao dedicar cinco anos para as pesquisas que resultaram no livro que figurou como finalista do prêmio Sesc de Literatura e no prêmio ABERST, em 2017.  Ela cria uma trama mostrando os que não se conformaram com o plano de abertura política, descreve as organizações secretas e suas tentativas de desestabilização ao investirem sobre uma culpa da esquerda pelos ataques a bomba ocorridos entre os anos de 1976 e 1981. A escritora constrói uma ficção que relata com fidelidade as consequências da ditadura no Brasil, tanto na vida das pessoas envolvidas, como na do cidadão mais comum.
 
O livro se debruça sobre a atuação dos agentes secretos no Brasil no Serviço Nacional de Informações 1964-1990 (SNI), no Centro de Informações do Exército (CIE) e na Escola Nacional de Informações 1972 – 1990 (ESNI); todos foram fontes de pesquisa para a composição de Vestígios.
 
Logo no início do romance o leitor se depara com um acontecimento real que a autora utiliza para balizar a sua narrativa, a queda da Casa da Lapa ou Chacina da Lapa em São Paulo, resultado de uma operação do exército que invadiu uma reunião do PCdoB, até então clandestino no Brasil, e matou dois dirigentes do partido e prendeu mais cinco pessoas. O personagem Mário é um dos infiltrados responsáveis pela ação.
 
Nesse momento, no país, se iniciava uma abertura política lenta, fator preponderante para que grupos radicais organizassem ações terroristas com bombas em atentados como o do Riocentro. A costura de Sandra aparece como um traço da boa escrita e, ao passo que nos apresenta características de um tempo histórico, desenha sua escrita enxuta e composta: “Agentes da ditadura, como agora são classificados os ligados à área de informações durante o governo militar. Um agente da ditadura, Mário ainda se admirava do sentido da expressão”. (p. 65) Aos poucos os agentes da ditadura vão sendo apresentados, “Agentes disfarçados, agentes infiltrados, agentes de inteligência e de contrainteligência, lidando com informações classificadas como secretas, confidenciais, restritas”. (p. 65) Paulatinamente começamos a mergulhar nas pistas e constatações somadas nas páginas.
 
Sandra Abrano traz a experiência como editora e livreira para a sua escrita. O fato de já ter trabalhado com grandes e pequenas editoras, amplifica a sua visão sobre o texto; o convívio com os caminhos da escrita desenha uma leitora com bagagem suficiente para entender o funcionamento interno de uma boa trama. Em Vestígios, ela consegue desenvolver o interesse no leitor, que passa a se tornar cumplice também de um espetáculo que corre lento, na junção de cada palavra, da escrita para a vida real. O carpir da estrutura, a busca pelo passeio nas características do gênero, a conexão entre as cenas, tudo funciona de forma rica e interessante.
 
Sandra narra em terceira pessoa e em primeira quando traz trechos dos cadernos de Mário. A presença da ficção é a todo momento atravessada pelos fatos históricos que transformam o livro numa força que constrói uma atmosfera de suspense tensionada pelos ecos da realidade. A sensação de que a ditadura realizou na sociedade a dor e o medo, ainda persiste e se apresenta com passar das páginas e acaba se instaurando. O thriller político Vestígios é bem pensado e sua escrita é fluida, faz do livro um caminho de conhecimento aliado ao prazer da boa leitura.

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