Selma Lagerlöf, a ficção como uma forma de espiritualidade

Por Elena Enríquez Fuentes


Selma Lagerlöff em cena de documentário dirigido por Gardar Sahlberg.



Quem nunca se deparou com uma situação sem saída? A garganta fica obstruída, o estômago grita, os olhos lacrimejam, as mãos se fecham em punhos, a vulnerabilidade é dor corporal. Selma Lagerlöf diz, através da voz de uma de suas personagens: “O ser humano é mais forte do que acredita e mais frágil do que imagina.” À medida que mergulhamos na biografia e na obra dessa escritora, percebemos profundas conexões entre ficção, fantasia e experiência de vida.
 
Lagerlöf nos lança um feitiço e, por meio de sua magia, convida-nos à transformação. Todos nós sabemos sobre perdas, mas as mulheres, os homens, as crianças e os animais na sua obra usam o sofrimento como uma maneira de expandir os limites corporais, ampliarem a consciência, tornarem-se mais sensíveis, perceberem mais e melhor estar abertos à compreensão.
 
Talvez as maiores paixões da escritora sueca fossem escrever e sua terra natal. Ela nasceu em 1958 em Mårbacka. Ainda na infância foi acometida de uma displasia que limitou sua mobilidade e foi dessa ocasião que maturou o grande prazer da leitura. Já aos sete anos tomou a decisão de que seria escritora. Aos dez anos, havia lido a Bíblia, conjunto de livros que, para ela, entrecruzavam realidade e fantasia, sem limites; e onde descobriu que os infortúnios moldavam a existência, que adversidade pode servir à criação de nossos próprios mundos e isso não é loucura, é sobrevivência.
 
Ela moldou o seu mundo. No final do século XIX e durante toda a primeira metade do século XX, as mulheres estavam restritas a pouquíssimas opções de vida social, para dizer o mínimo. Selma Lagerlöf escolheu estudar como o meio ideal de construir uma independência financeira, poder desfrutar da liberdade e controle de sua vida. Conseguiu isso graças ao apoio do irmão mais velho, Johan Lagerlöf, quando estavam prestes a perder a fazenda da família. Em meio à crise, era ele quem enviava o dinheiro para sustentar os estudos da irmã em Estocolmo.
 
Na infância, a casa de Selma era uma construção simples de madeira, ao estilo do final do século XVIII. Mas, o hábitat dos Lagerlöf precisou ser leiloado para cobrir as dívidas contraídas por Johan na tentativa desesperada de tornar a propriedade lucrativa. E isso marcou definitivamente a vida da primeira mulher na história a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Quando ela se estabeleceu como escritora, readquiriu Mårbacka, se tornou uma empreendedora, e fez da terra um lugar próspero, desfazendo o estereótipo dominante de que as mulheres eram incapazes de dirigir o trabalho agrícola.
 
É amplo o pioneirismo de Selma Lagerlöff; além do estudo, da atividade como fazendeira, esteve à frente, entre outras coisas, na concessão de direitos às mulheres, na educação de crianças em vez de aceitar seu trabalho e na oferta de seguridade social aos que trabalhavam para ela. Ao que se sabe, foi alguém que fez de Mårbacka seu paraíso, a terra possível, e cenário para várias das narrativas de seus contos e romances.
 
Não existem biografias sem conflito. É quase um lugar-comum: todo ser padece. Nos livros de Lagerlöf todos, gansos, raposas, ratos, duendes, alcoólatras, migrantes, crianças e adultos apresentam-se alinhados pelo conflito, e coexistem, compartilham e apoiam uns aos outros; a interação entre eles é o que muda a maneira como veem, sentem e interagem no mundo.
 
Em A saga de Gösta Berling (1891), um pastor luterano, demitido por ser alcoólatra, nos permite sentir nossa própria impotência e a dos outros diante do vício e a determinação quase sobre-humana de superar a dependência. As dificuldades dos camponeses suecos a caminho da Palestina no final do século XIX, no romance Jerusalém (publicado em dois volumes, 1901 e 1902), tornam palpável a atemporalidade do impulso de migrar e seus perigos. Em A casa de Liljekrona (1911), um conflito semelhante ao da escritora: por necessidade a casa onde Maja Lisa vive deve ser vendida. E O cocheiro da morte (1912) abre, no fim da vida, improváveis portas e janelas.
 
Seu livro mais conhecido, e talvez o mais lido, A maravilhosa viagem de Nils Holgersson, oferece uma fantástica jornada interior. Um pequeno rebelde pouco considerado, experimenta infortúnio, o medo, o desamparo; sem julgamento, sem drama, alcança sua vulnerabilidade ao limite, enquanto sobrevoa pela Suécia nas costas de um ganso.
 
Lagerlöf escreveu ao lado das vanguardas literárias europeias; as mulheres tinham pouco lugar nos círculos artísticos, mas ela conquistou inúmeros leitores, e as vendas dos seus livros ofereceram-lhe prosperidade financeira, esta que foi com a pecúnia da Academia Sueca, em 1909.
 
Na via pública, a escritora integrou as frentes do movimento sufragista e sua sororidade exercida de maneira notável mesmo quando o termo havia alcançado o sentido simbólico dos nossos dias. A escritora alemã Nelly Sachs, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1966, tornou pública a sua história com Selma Lagerlöf: judia, foi graças a ela, que conseguiu, ao lado da mãe, deixar a Alemanha quando o estado começa a erguer definitivamente as sentenças de morte contra os judeus. Sachs não chegou a Estocolmo a tempo de agradecer o esforço da amiga; quando ela chegou ao novo país, já havia passado o 16 de março de 1940, quando Lagerlöf havia morrido.
 
Selma Lagerlöf oferece a ficção e a fantasia como formas de abordar, por meio do passatempo, situações desgarradoras e, assim, compreender o que chamamos de espírito. Em sua literatura, experiências extremas não destroem, mas sublimam o humano; são quase caminhos iniciáticos para descobrir a criatividade, o amor e conhecer a alma dos viventes. 


Ligações a esta post:


* Este texto é a tradução livre de “Selma Lagerlöff, la ficción como una forma de espiritualidad”, publicado aqui, em El Cultural.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

11 Livros que são quase pornografia

Dez poemas e fragmentos de Safo

Boletim Letras 360º #629

Boletim Letras 360º #643

A história do amor de Fernando e Isaura, de Ariano Suassuna

Boletim Letras 360º #644