Não posso ficar com você: “Vidas passadas”

Por Cristina Aparicio




Há filmes que parecem construídos a partir de momentos, filmes que condensam a realidade e a fragmentam em inúmeras imagens. É o que se poderia definir como cinema postal, de slides, de páginas de um álbum de fotografias vintage que guarda memórias. Mas o que exatamente são essas imagens arquivadas? Com o passar do tempo, a única coisa que parece verdadeiramente imutável é o que as fotografias mostram. Tudo o que envolve a cena fotografada (as emoções, o que está imediatamente antes ou depois da sua captura, o que está por trás da câmera...) está sujeito à capacidade de cada pessoa fixar as coisas na memória, a toda uma subjetividade da qual depende de mil fatores psicológicos, emocionais, circunstanciais... Então o que fica, o que é real, o que sempre dura, é a imagem fixa, que funciona como um interruptor que abre uma porta para a recordação. Não é por acaso que quase não há fotografias num filme como Vidas passadas, um filme que reflete precisamente sobre o poder das memórias e a forma como elas evoluem ou perduram ao longo do tempo.
 
É fácil se reconhecer em Vidas passadas. Embora a história que conta seja muito específica e na maioria das vezes adote um único ponto de vista, Celine Song encontra uma forma de universalizar o aspecto emocional da narrativa. Aqui há espaço para os amores perdidos, os reencontrados, os da infância, os desejados, os desejados, os impossíveis, os casuais, os sonhados, os de luto... Todos poderão se reconhecer como nostálgicos ou cínicos ao presenciar a história (de amor) de Nora e Hae Sung. Um olhar para a câmera nos primeiros momentos do filme alerta para seu caráter inconformista: Song mergulha no gênero do romance cinematográfico para evitar qualquer clichê e propõe uma forma atípica (e realista) de representar o amor romântico na ficção. Não há cinismo no olhar da cineasta: Vidas passadas é um exemplo perfeito do valor do cinema como meio de decifrar e compreender a vida a partir do terreno (não há espaço aqui para o mágico ou o divino), a partir de algo tão simples e minúsculo como a batida de um coração. E aqui, que remédio, é preciso falar de Richard Linklater.
 
Em seus filmes, Linklater tenta a difícil façanha de capturar o tempo. Ele fez isso com a trilogia que começou com Antes do amanhecer, 1995; três filmes separados por nove anos cada (tanto na produção quanto na ficção) e que abriram uma janela para o romance que Jesse e Celine foram usufruindo ao longo de quase duas décadas. E também com Boyhood (2014), em que filmou o protagonista infantil ao longo de doze anos. A tarefa não é fácil, porque da passagem do tempo só resta as suas consequências, a sua evidência física: tratava-se, portanto, de tornar visível o invisível. Mais próximo da icônica trilogia do que do filme de 2014, Vidas passadas partilha essa procura, essa necessidade de discernir a influência do tempo nas pessoas, nas suas histórias, embora os mecanismos que utiliza para o fazer sejam diferentes dos do texano. Song utiliza as ferramentas narrativas clássicas que permitem a viagem no tempo na ficção: elipses, capitulares que alertam sobre os anos que se passaram ou paralelismos visuais que permitem comparar diferentes momentos em imagens, trazendo cenas da infância do passado para o presente dos protagonistas; imagens que dialogam entre si, que se abraçam e que tornam visíveis identidades esquecidas. E assim dispensa qualquer artifício, optando por uma atuação honesta que tende a romantizar o seu aspecto visual embora sem nunca renunciar ao realismo em que se inscreve a proposta. Porque na sua própria natureza existe um lirismo inalienável, uma poética que se apoia na beleza dos espaços onde a história se passa.
 
Assim, os planos detalhados infiltram-se na narrativa como inserções desconexas, mostrando recantos indeterminados dos locais onde os acontecimentos se desenvolvem. Quase como se a câmera mostrasse aqueles pontos mortos para onde se dirige um olhar perdido, um ver sem ver que permite concentrar-se no pensamento, oxigenando a história, dando-lhe o seu tempo, o seu espaço, abrandando o ritmo ou talvez acompanhando-o. Mas há também um esforço consciente para enquadrar e compor as imagens como se as memórias estivessem encapsuladas nelas. Talvez por isso, às vezes, os personagens sejam emoldurados em janelas, portas ou vidros, como se estivessem colocados dentro de uma moldura ou de um cartão postal; como se cada mudança de plano equivalesse a virar as páginas de um álbum de fotos ou mudar de slide. E nesse gesto de conter a vida em fragmentos, de enquadrar o que é importante dentro do plano, o espaço cinematográfico é o destinatário de tudo o que a geografia recolhe, o destinatário de um amor que não é regido pelas leis físicas do contínuo espaço-tempo.
 
São muitos os mitos construídos em torno do amor romântico e que o cinema, claro, contribuiu para perpetuar. Falar de predestinado é aludir a uma dessas falsas crenças que impõe que exista uma única pessoa para cada ser humano. Ou, o que dá no mesmo, o mito da cara-metade. O cinema romântico soube explorar e criar uma estrutura narrativa comum baseada nesta ideia: o final feliz foi um resultado obrigatório que surgiu desta ideia segundo a qual o amor tem que triunfar porque é assim que está escrito, e a única alternativa é a tragédia. Vidas passadas parece destinado a se tornar isso que agora tem se chamado de clássico moderno (mas o tempo dirá). A seu favor tem o que fez da trilogia de Linklater uma proposta cativante: não desistir do amor, apenas de seus adereços idealizados, tóxicos e impossíveis. E as ligações entre o ponto de vista de ambos os cineastas não terminam aqui: as conversas inesgotáveis ​​durante os passeios à deriva como forma de redescobrir a cidade e o outro, ou o que dá no mesmo, o passeio linklateriano como forma de apaixonar-se; a transformação das relações como consequência do amadurecimento de seus integrantes... Song transita entre dois tempos: o presente real e o passado lembrado. É a sua forma de contrastar as etapas e fases vitais que o amor vivencia como um sentimento compartilhado. Talvez por isso a tela esteja repleta de espelhos e janelas que devolvem o reflexo, que às vezes até mostram o mesmo rosto repetido e multiplicado no mesmo plano; também silhuetas negras, sombras criadas a partir de contraluzes fortes... Como se dentro desta história tudo pudesse sofrer mutação, transformar-se. O amor pode sobreviver a tantas mudanças?
 
Para responder a esta pergunta, Song recorre ao conceito coreano de “in-yeon”: quando duas pessoas interagem de alguma forma é porque existe uma conexão entre elas, elas estão eternamente ligadas em vidas passadas, presentes e futuras. O in-yeon é o destino, é o consolo para todas aquelas condicionais não consumadas, para as oportunidades perdidas ou para os erros cometidos. É, portanto, a única forma de o amor sobreviver ao passar dos anos, às mudanças de identidade, aos terceiros, aos outros amores... É colocá-lo numa dimensão alternativa onde tudo é possível. Um espaço, talvez cinematográfico, onde o amor é sempre possível. 


* Este texto é a tradução livre de “No consigo estar contigo: ‘Vidas pasadas’”, publicado aqui, em Jot Down.

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